A vantagem de falar-se de um acontecimento histórico, depois de 50 anos, é que a distância facilita uma análise mais isenta de emoções.
Ainda estarrecido com as revelações ocorridas perante a Comissão da Verdade, atrevo-me a tecer alguns comentários sobre as consequências do golpe militar de 31 de março de 1964.
Era uma manhã de quarta-feira, 1º de abril, por volta de meio-dia, quando chegando do colégio, encontrei meu irmão mais velho, pregado ao rádio, à escuta de notícias sobre o golpe desencadeado no dia anterior, contra o presidente João Goulart.
Não poderia imaginar que aquele movimento fosse durar tanto tempo, a ponto de esterilizar minha vida acadêmica. Mas aconteceu.
Na faculdade, olhávamos alguns colegas com desconfiança. Será que ele é um espião? E por cima de nossas cabeças, como uma assustadora espada de Dâmocles, pendia o Decreto-Lei 477 e a Lei de Segurança Nacional que puniam com expulsão qualquer ato que fosse considerado subversivo, mesmo que não passasse de uma simples rebeldia estudantil.
Destacarei apenas alguns fatos que se entrosam para lembrar esse período.
Um colega da república estudantil, em que eu morava, na rua de São Pantaleão, publicou um livro de poesias com o instigante título de “A incrível face da lira cativa”, em uma publicação tosca, de folhas grampeadas e impressas em mimeógrafo. Ali o autor achou por bem colocar-me como revisor do livro. Foi o bastante para que eu fosse chamado à polícia para ser interrogado.
Afora esse incidente que me envolveu nas malhas da repressão, nossa república estudantil era alvo de constante vigilância pelo fato de ali morar o mesmo autor do referido livro, Edmilson Silva Costa. Sempre que chegava uma autoridade federal em São Luís, a vigilância aumentava. Suas maiores atividades revolucionárias eram fazer um discurso antes do café da manhã e conversar com seus amigos sobre livros, jornais e notícias da atualidade.
Vendo esse acontecimento com o recuo do tempo, constato o ridículo daquela vigilância, pois Edmilson – hoje um respeitável professor, economista e político, em São Paulo – não passava, então, de um cabeludo, de chinelo, calça jeans, mal alimentado, que carregava, por baixo de sua cabeleira crespa, ideais e sonhos. Que mal poderia fazer para o regime um estudante daquele porte?
Do mesmo modo, os partidos políticos clandestinos. Depois que foram legalizados, ninguém tem medo de suas ideologias e nenhum poder de destruição detêm para ameaçar o poder, como nunca tiveram, a não ser nas mentes amedrontadas dos serviços secretos de inteligência. Imaginar-se que nosso confrade da Academia, Sálvio Dino, tenha um dia sido preso, por ser considerado uma pessoa perigosa ao regime, parece até uma brincadeira. Do mesmo modo, era considerar o presidente João Goulart como comunista. Como poderia ser comunista um estancieiro do Rio Grande, herdeiro de 14 mil hectares de terras e 30 mil cabeças de gado e que passou sua juventude envolvido com o futebol e muitas mulheres?
Esses fatos fazem a gente concordar com Joaquim Ferreira dos Santos, cronista de O Globo, que optou por intitular sua crônica do dia 31 de março passado de “1964 – A chanchada”, diante de tantas hilaridades acontecidas naquele ano, a começar com a declaração do general Mourão Filho: “Não sei nada de política, sou uma vaca fardada”.
Com a supressão das eleições para governador e presidente da República, passei a acompanhar a política internacional com muita atenção. Tinha meus candidatos em toda parte do mundo. Torci muito pela eleição de François Mitterrand, na França, e Eduardo Frei e Salvador Allende, no Chile.
A juventude que hoje vive em permanente estado de liberdade, que desde os dezesseis anos de idade exerce o direito de votar, de dois em dois anos (meu primeiro voto para presidente da República foi aos 38 anos de idade) e que vai às ruas fazer manifestações a qualquer pretexto, não pode avaliar o que significa o verdadeiro valor da palavra liberdade nem imaginar as provações por que passou minha geração, condenada à letargia e prisioneira de sua circunstância.
Lourival Serejo
Lourival de Jesus Serejo Sousa nasceu na cidade de Viana, Maranhão. Filho de Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa. Formou-se em Direito, em
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