De como queimar a língua duas vezes

Ceres Costa Fernandes
Mestra em Literatura e membro da Academia Maranhense de Letras

25/08/2013


Esta é uma crônica envergonhada. Envergonhada da língua nem sempre moderada desta própria escrevinhadora. Dessa imoderação, sobreveio o incidente que veio de ser mencionado no lançamento do livro de poemas “O Pescador de memórias”, do prosador, e agora poeta, Lourival Serejo. Declarou ele, de público, estar um tanto receoso na ocasião por ser um novel poeta e que a colega Ceres Costa Fernandes dissera, em reunião da Academia Maranhense de Letras - sem mencionar algum escritor, note-se em meu favor - que desconfiava muito de prosadores já maduros que enveredavam assim, a modo que de repente, pelo mundo dos versos e poemas.

Na verdade, eu disse e confirmo a minha desconfiança, mas nesse dia o dito tinha outro escritor como endereço. Nem lembrava da nova empreita do excelente prosador Lourival Serejo.

Meu próprio irmão, Ronaldo Costa Fernandes, prosador, com 11 livros publicados, oito romances, prêmio internacional de romance e alguns nacionais, faz algum tempo, me comunicou que seu novo livro seria de poemas. Temi e argumentei, por que mexer no que faz sucesso? Não me ouviu. Ainda bem. Cinco belos livros de poemas depois - o último recebeu o Prêmio de Poesia 2010 da Academia Brasileira de Letras - confirma que é poeta. E dos bons. E o melhor, não abandonou a prosa, continua escrevendo romances e afins. Quem conhece a sua obra, sabe, ele consegue ser bom nos dois gêneros. É ambivalente, coisa não tão corriqueira na literatura, como em questões de gêneros outros.

A fidelidade da maioria dos escritores a um só gênero literário é tendência dominante. Incursões a outros domínios há, mas raras e algumas não duradouras. Não imagino meus gurus da prosa Graciliano Ramos e José Saramago cometendo poemas. Nem o nosso Aluísio Azevedo, também. Casos há de bons prosadores, de contistas a jornalistas que, ao verem aproximar-se a velhice, têm surtos de saudosismo confundidos com inspiração poética. Acreditando-se poetas, reunem amigos para publicar choramingas rimadas e com isso destroem toda a reputação de bons escritores que acumularam no decorrer da vida.

Temi que isso se desse com o meu dileto amigo Lourival. Embatuquei. Que vou dizer da sua poesia e, inda mais, depois do ele declarou a meu respeito? Ô língua. Porque fui falar aquilo? Agora estou na linha de tiro. Quem sabe viajo, finjo adoecer ou passo uns tempos sem aparecer na AML.

Preparada para o sacrifício, fui lendo aos poucos o “Pescador de memórias”: ora enlevada; ora emocionada; ora divertida; ora pensativa. Que bom, habemus poeta, não preciso mais sumir de circulação.

O texto é limpo, despojado de palavras ou conceitos falsamente complexos, daqueles em que se espreme o palavrório sofisticado e não pinga uma ideia, um pensamento mais profundo. O autor se inscreve na linhagem dos poetas de expressão leve e significação densa, como Manoel Bandeira que diz, em Belo Belo: “Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples”. O autor de “Evocação do Recife”, também é um cantor das águas, do rio que guarda seus alumbramentos da infância, o Rio Capiberibe.

Jogando essencialmente com apenas quatro vocábulos: Lago, Cidade, Lua, Tarrafa, todos polissêmicos - os demais não passam de reiterações - o autorconstrói um mundo. Um mundo de sentimentos, um mundo de memórias.

No imaginário do poeta e da cidade, o vocábulo Lago permeia tudo. Os outros nomes ligam-se, giram, interpenetram-se, afundam, afloram de dentro do significado dessa palavra. Lá estão soterradas, na lama viva, as memórias que são pescadas, uma a uma pelo fino anzol de uma lembrança que perfura a saudade ou uma “canoa abarrotada de lembranças” trazida pela tarrafa do pescador de memórias.

No fundo está o tesouro, a prata que cega os que ousam mergulhar nos seus mistérios. Até a Lua, tão luminosa e alta, que “domina os telhados das casas” e penetra em todos os espaços, se rende a ele. Só o Lago “tem o privilégio de abrigá-la em suas entranhas”.

Num breve poema, “A Placenta”, ele resume tudo o que o lago significa para a Cidade: “O lago/ é isso mesmo, / agora percebo, / todos percebem: / O lago é uma enorme placenta/ que alimenta os filhos da cidade.” Eu digo mais, o Lago não é apenas a placenta, mas o próprio útero, o líquido amniótico, em que a Cidade está mergulhada.

Cidade e poeta confundem-se em um único ente: às vezes, ele é a enxurrada, despedaçando-se pelas esquinas; às vezes, o seu canto acorda a cidade ou sua imagem reflete o sol nas pedras ou ele é o filho que joga uma tarrafa no ar e a abarca, toda, com o seu amor, como no poema “Intimidade”.

Termino com o mais belo poema do livro, “Tarrafa do Tempo”, ode ao amor acendrado que o poeta dedica à sua cidade. Com o linguajar das gentes que vivem à beira/dentro d´água, revela: “Não consigo libertar-me desta tarrafa/ sou um peixe prisioneiro/ condenado/ a viver preso na tarrafa do tempo” […] “ o meu crescimento é a garantia da prisão./ Quanto mais anos acrescento/ mais a tarrafa me prende/ com a certeza de que/ nunca fugirei.”

Digo, por minha conta, que essa prisão não é má. Feliz de quem teve uma infância rica de sonhos, tantos que o prendam ligado a eles para sempre, terá quando quiser uma lembrança, ou um barco cheio delas, para preencher a vida. E se, mercê da sua arte, construir um universo escrito, serão perenizados os instantes de beleza e exorcizados aqueles que trazem dor, assim como em o “Pescador de memórias”, de modo belo e comovente, como só os poetas sabem construir.

E-mail: ceresfernandes@superig.com.br



Lourival Serejo

     Lourival de Jesus Serejo Sousa nasceu na cidade de Viana, Maranhão. Filho de Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa. Formou-se em Direito, em
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