Desde que vi pela televisão os primeiros protestos pelas ruas de São Paulo, com uma multidão desenfreada querendo e querendo denunciar e reivindicar, uma série de reflexões e lembranças vieram-me à mente. Lembrei-me até de um livro didático do curso colegial, que tratava sobre o estouro da boiada. Eram dois textos, um de Euclides da Cunha e outro, de Rui Barbosa. Éramos convocados a dizer qual deles descrevia com mais realismo aquele fenômeno da “doida arrancada” do gado, desencadeada por um mínimo acidente.
Essa lembrança não significa que desejo comparar a explosão de cidadania que assolou o país com um estouro de boiada. A semelhança fica somente no módico pretexto para a arrancada. A indignação contida, há muitos anos, foi lancetada pela tópica reclamação do aumento do preço de transportes, em São Paulo. Precisamente, um aumento de vinte centavos. A principio, supôs-se que os protestos eram desproporcionais à reclamação. Depois, pensou-se em armação política contra o prefeito e o governador. E o movimento foi crescendo, crescendo. Outras denúncias surgiram. De repente, espalhou-se pelo Brasil e deu no que estamos vendo diariamente pela TV.
Alguns analistas ainda criticam os manifestantes (se estivéssemos na ditadura, diríamos subversivos) por não saber o que querem e por utilizar termos genéricos em seus apelos. O que me parece mais preocupante é a conclusão de que o povo tirou de seus representantes políticos a legitimidade de reivindicar em seu nome. Foi para a rua e passou a gritar com sua própria voz, para ser melhor ouvido o volume do seu clamor. Uma espécie de democracia direta, nas ruas; e virtual, pelas redes sociais.
Rompeu-se com a servidão voluntária de que fala Étienne de la Boétie, em seu famoso Discurso da servidão voluntária, escrito em 1574, em favor da liberdade e contra o medo e a indiferença nos regimes ditatoriais.
Depois de muito tempo, o alerta do filósofo francês continua atual. Sem consciência crítica, a cidadania é sufocada pela passividade e o povo voluntariamente torna-se servil. Recentemente, outro francês, Stéphane Hessel, convocou todos os cidadãos do mundo a indignarem-se contra os desvios éticos, enfatizando que “a pior das atitudes é a indiferença”.
O filósofo esloveno Slavoj Zizeck, um pensador contemporâneo, em seu livro O ano em que sonhamos perigosamente, ao explicar o movimento Occupy Wall Street, ocorrido em 2011, nos Estados Unidos, lembra-nos da conhecida cena dos desenhos animados, na qual vemos um gato correndo chegar à beira de um precipício e continuar correndo, sem perceber que está caindo. Só quando ele olha para baixo é que percebe que está caindo. E arremata o filósofo: “O que os manifestantes estão fazendo é simplesmente levar os que estão no poder a olhar para baixo”.
Em todos os jornais do país e pelas redes sociais, despontam inúmeras análises desse fenômeno que paralisou o país. Até os estudantes, por muito tempo indiferentes e apáticos, resolveram sair para as ruas e aliarem-se às indignações populares.
Entendo, sem desconhecer as diversas opiniões já divulgadas (os psiquiatras falam até em tédio dos jovens como causa dos protestos) que estamos assistindo a uma verdadeira revolta pela ética, em seu sentido mais amplo, remontando a Aristóteles que a concebia como o bem estar individual, a virtude de viver bem. O povo exasperou-se, depois de conferir tanta corrupção e tanta falta de compromisso com o bem comum por parte dos dirigentes. Vivemos num mundo marcado pela velocidade. E os gestores andam em passos de cágados, sem visão de futuro, sem pró-atividade. E o povo cansou de esperar, cansou de ser enganado, de ser desconsiderado.
Em audiências públicas que tenho feito como ouvidor da justiça, nos bairros da capital, noventa por cento das reclamações que ouço referem-se às políticas públicas. O povo clamando para ser ouvido pelos administradores, em busca de uma justiça mais abrangente, que envolva o respeito pela cidadania.
A ética não é conversa de aconselhamento. É uma exigência prática. A prova disso está nas ruas. A lição está vindo das ruas e os políticos não vão esquecer, ou serão esquecidos por seus eleitores. O Brasil não será o mesmo a partir de agora. Outra lembrança que traz esse episódio é a conhecia declaração de Aristides Lobo de que o povo assistiu bestializado à proclamação da República. Agora, inverteu-se a situação, são os donos do poder que estão bestializados com a agitação do povo. O primeiro movimento foi de cima para baixo; o atual é de baixo para cima. São os mais perigosos.
A República brasileira está vivendo um momento histórico, raro, que está desencadeando as mais diversas teses para tentar explicá-lo. Todos arvoram-se em sociólogos ou cientistas políticos para dar seu palpite. Sem dúvida, a surpresa dessa crise (em seu sentido mais positivo, calcado na etimologia da palavra) desafia análises profundas que ultrapassam em muito um simples artigo de jornal. Entretanto, as discussões de bares, faculdades e pelas ruas, todas já são bastantes em si para sacudir o marasmo do gigante chamado Brasil.
Lourival de Jesus Serejo Sousa nasceu na cidade de Viana, Maranhão. Filho de Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa. Formou-se em Direito, em
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