Ameaça à  Constituição

Não fui surpreendido com a notícia porque já a havia lido, há meses, em algum jornal. Pela ousadia e absurdo, pensei que a ideia tivesse sido abandonada. De repente, vejo, pelo Jornal Nacional, a entrevista com um deputado federal do Piauí, integrante do Partido dos Trabalhadores, demonstrando satisfação pela aprovação da sua Emenda pela Comissão de Constituição e Justiça, da Câmara dos Deputados. Trata-se da PEC nº 33.

O que pretende esse legislador? Nada menos do que condicionar alguns julgamentos do Supremo à aprovação da Câmara dos Deputados. Num Estado Democrático de Direito, numa República que se respeita, essa iniciativa estapafúrdia deve merecer nosso repúdio em todos os sentidos.

O Supremo Tribunal Federal está vivendo seu período de maior atuação, desde a sua instalação, em 1891, exercitando o mais profundo ativismo em favor da população, da paz e da estabilidade política, como nunca havia feito. Até grandes debates sociais e questões de políticas públicas – demarcações de terras indígenas, célula tronco, anencefalia, uniões homoafetivas, etc ­– foram e continuam sendo resolvidas pela nossa Corte Maior.

Esse ativismo, em sua maior parte, é decorrente da inércia dos legisladores que deixam o vácuo legislativo transformar-se em conflitos e reivindicações populares. Vem, então, a Justiça – hoje guardiã da democracia – suprir as omissões e resolver os impasses.

A história do nosso Supremo Tribunal Federal, tão bem delineada pela historiadora Lêda Boechat Rodrigues, em vários volumes, está repleta de atos de heroísmo, ao longo de sua existência, em favor do Direito e da Justiça, como último refúgio da garantia do cidadão contra os abusos do poder.

No percurso dessa história, destaca-se a famosa doutrina brasileira do habeas corpus – a    primeira manifestação de ativismo da nossa Corte Constitucional – nascida da genialidade de Rui Barbosa e da interpretação criativa dos ministros, cuja atuação garantiu a liberdade de expressão de muitos cidadãos diante do poder autoritário.

É preciso distinguir o Supremo dos seus ministros. Estes passam, mas a instituição fica. A postura de retaliação é um engano que repercute nos postulados da democracia e enfraquece as garantias dos nossos direitos.

Tzevetan Todorov tem razão quando diz que a democracia está cheia de inimigos íntimos. No presente caso, esses inimigos estão alojados dentro do próprio sistema político, cujo funcionamento é garantido pelo próprio Estado Democrático de Direito.

Na divisão dos poderes, o Supremo encarna o Poder Judiciário, na perspectiva nacional. A independência que o Supremo tem, hoje, é uma garantia para todos os brasileiros. O exemplo mais atual é o julgamento do mensalão. Não fosse essa postura de independência dos ministros, tal julgamento nunca seria realizado.

A título de referência, lembro a posição da Suprema Corte dos Estados Unidos, cuja autoridade não é questionada nem pelo presidente da República. No caso Watergate, bastou um juiz para requisitar de Nixon as fitas que ele recusava entregar. A sua resistência inicial precipitou sua renúncia, para não ser submetido ao impeachment. Nas eleições em que Bush venceu Al Gore, no ano 2000,  as denúncias de fraude, na Flórida, foram sepultadas por decisão da Suprema Corte, e ninguém mais falou no assunto. Ali vigora, com muito rigor, a antiga máxima da Igreja: Roma locuta, causa finita.

É preocupante constatar que a higidez  da nossa democracia seja ameaçada pela insensatez e pelo casuísmo daqueles que desconhecem as regras do jogo democrático e o respeito às nossas instituições.

Antigamente, quando a polícia e a justiça eram manobradas pelos chefes políticos, havia um adágio constantemente invocado em tom de escárnio, nestes termos: Chinelo me prende, sapato me solta.

Lembrei-me desse dito popular, pelo absurdo da notícia. Então, é isso: o que o deputado piauiense quer é reduzir o Supremo à condição de chinelo, em relação à Câmara dos Deputados, como se nossa Constituição fosse a “folha de papel” de Lassale.



Lourival Serejo

     Lourival de Jesus Serejo Sousa nasceu na cidade de Viana, Maranhão. Filho de Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa. Formou-se em Direito, em
Saiba mais

Contatos

  • email
    contato@lourivalserejo.com.br

Endereço

Desembargador Lourival Serejo