Os inimigos í­ntimos da democracia


Já conhecia o crítico literário búlgaro e hoje cidadão francês, Tzevetan Todorov, no campo da literatura, pelo estudo de suas obras Introdução à literatura fantástica (Perspectiva, 2010) e Poética da prosa (Martins Fontes, 2003). Agora, ele me aparece como cientista político, em recente livro traduzido no Brasil, com o provocativo título de "Os inimigos íntimos da democracia".

Atraído pelo tema e pelo autor, procurei devorá-lo com o ritual que todo bibliófilo empresta a essa atividade. Ao final, restou-me a compensação de saber que Todorov fez uma análise da vida política contemporânea de maneira precisa, com alertas para os incautos sobre os falsos profetas e a nociva influência midiática, sem compromisso com a isenção e a verdade. A atenção que merece o clamor de Todorov é justamente por não tratar dos inimigos externos, visíveis, fáceis de serem apontados, enquanto os íntimos podem estar simulados e inserirem-se na mente de uma população acrítica e manipulável.

O autor faz uma análise retrospectiva dos governos democráticos e totalitários, com o propósito de comprovar e alertar contra os três inimigos íntimos da democracia: o populismo, o ultraliberalismo e o messianismo.

Como exemplo mais próximo da tese de Todorov, temos a Venezuela que, sob o efeito do populismo liderado por Chávez, censurou a imprensa e retirou a independência do Judiciário. Temos também os riscos do day after da Primavera Árabe, os quais ainda não foram afastados. Está aí o Egito para demonstrá-lo, perdido na liberdade conquistada pela insatisfação do povo, por não ter visto ainda a concretização dos seus anseios democráticos. Complica-se mais a situação com o perigo de o poder vir a ser consolidado nas mãos de fundamentalistas muçulmanos, fato que levará ao messianismo, com a elevação de líderes do estilo iraniano.

Quando Lincoln definiu a democracia como o governo do povo, para o povo e pelo povo, nunca poderia imaginar que um dia o próprio povo, massificado por ideologias nocivas e por falsos líderes, poderia vir a tornar-se um inimigo da democracia. Nem suporia que, em si mesma, a democracia poderia criar tendências destruidoras.

Não pode haver democracia sem liberdade de imprensa. Mas se a imprensa for controlada por grupos minoritários ou pelo poder constituído, ela trai sua vocação de informar e denunciar, e pode alimentar o populismo. Daí a sugestão de Todorov, de considerar, pelo bem da democracia, que a liberdade de expressão seja relativa às circunstâncias, à maneira de expressar-se e à identidade de quem se expressa. "Ao funcionar como contrapoder, diz ele, a liberdade de expressão é preciosa. Já como poder, ela deve, por sua vez, ser limitada". Onde houver a manipulação midiática das massas, instala-se o populismo, e a democracia é ofendida em sua finalidade.

Alguns países da América Latina (Argentina, Equador, Venezuela) estão passando por conflitos ameaçadores à liberdade de imprensa por parte de governos que não admitem o exercício do direito de expressão, de informação e transparência da coisa pública. A recente eleição do presidente do Equador, com amplo apoio popular, para um terceiro mandato, é preocupante, por sua determinação de limitar a liberdade da imprensa equatoriana e dos outros poderes da República.

Outro estudioso atual da democracia, Amartya Sen, vê uma ligação direta entre a ideia de justiça e a prática da democracia, para quem essa ligação se justifica porque atualmente a ideia de democracia é mais bem vista como "governo por meio do debate" (Amartya Sen, A ideia de justiça. Companhia das Letras). E onde houver esse tipo de governo, com o uso da argumentação pública, ocorrerá a diminuição do desequilíbrio econômico e social na sociedade.

Curiosa é a análise do ultraliberalismo que faz o pensador búlgaro, no qual o indivíduo, como valor supremo e merecedor de toda a proteção, pode levar à ilusão de uma liberdade que, por consequência, vai favorecer os poderosos para vencerem a concorrência com os mais fracos e engordarem suas potências econômicas. De que vale a liberdade da galinha diante da força da raposa? O Estado democrático deve buscar a forma de ambas conviverem com suas individualidades: cada uma respeitando a integridade da outra.

Esqueceu-se Todorov de falar de um grande inimigo da democracia, em toda a parte, em qualquer época: a corrupção. A corrupção é como um ácido que corrói lentamente a democracia, deixando-a vazia e sem vitalidade. O poder dos abusos que a corrupção provoca retira a legitimidade das eleições e ludibria o povo, que acredita no exercício de uma liberdade equivocada.

O livro de Tzevetan Todorov é um alerta para o século XXI, com desafios que poderão comprometer a democracia. Entre o Estado e o povo, deve prevalecer a harmonia das forças. Para usar suas próprias palavras: "Estado e indivíduo, cada um limitando os abusos do outro". Em suma, no regime democrático, deve prevalecer a regra básica de que todos os poderes sejam limitados.

Lourival Serejo



Lourival Serejo

     Lourival de Jesus Serejo Sousa nasceu na cidade de Viana, Maranhão. Filho de Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa. Formou-se em Direito, em
Saiba mais

Contatos

  • email
    contato@lourivalserejo.com.br

Endereço

Desembargador Lourival Serejo