Evolução da legislação e da jurisprudência eleitoral em 80 anos

     Ao destacar para o início desta palestra a criação da Justiça Eleitoral não pretendo ater-me ao seu aspecto histórico, tão conhecido de todos nós, mas busco ressaltar sua importância como fator de fortalecimento da democracia brasileira. 

     Como sabemos, talvez a consequência mais  relevante do movimento revolucionário de 1930 foi a criação da Justiça Eleitoral, com o propósito de assegurar a legitimidade das eleições.

     Lincoln de Abreu Penna, em seu livro República brasileira,  chega a uma conclusão bastante pertinente sobre esse acontecimento:

“Pode-se dizer que o exercício da cidadania começa a se efetivar a partir de 1930; antes sua existência era uma prerrogativa das elites que não concebiam em sua ótica a extensão desse princípio ao povo, sempre depreciado e tido como incapaz de influir nos destinos do país.” (Penna, Lincoln. República brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p.149)

     A Justiça Eleitoral foi criada, no Brasil, em 1932, para atender um clamor popular, o anseio da verdade das urnas, o anseio de que tivéssemos uma representação política autêntica, resultado do voto dado e apurado. A Constituição de 1934 consolidou essa conquista ao incorporar a Justiça Eleitoral como integrante do Poder Judiciário.

     Fato importante  que sobreleva ressaltar aqui foi a publicação do 1º Código Eleitoral, nessa mesma data (1932), assegurando, dentre várias, duas grandes conquistas: o voto da mulher e o voto secreto.

     Ao conquistar o direito de votar, a mulher inseriu-se na comunidade política, como cidadã e agente de transformação.

     O voto secreto foi o resultado de uma longa aprendizagem que passamos desde o período colonial, Império e República Velha. Assegurando-se a liberdade do cidadão ao votar, passou-se a contribuir com o voto livre, sem o estigma da pressão e do cabresto do coronel.

     Como eleição não se coaduna com as ditaduras, a Constituição de 1937, do Estado Novo de Getúlio Vargas, deixou de contemplar a Justiça Eleitoral, só vindo esta a renascer com a Constituição de 1946, permanecendo até hoje. Limitada e vigiada pela última ditadura militar, mantém-se ativa.

     A Justiça Eleitoral está, hoje, a um estágio avançado e respeitado de aperfeiçoamento. O eleitor que sai de casa para votar e volta para a televisão à espera do resultado da eleição, não tem idéia da mão de obra que foi dedicada ao longo de vários meses para garantir a segurança do seu voto. Fazer eleição é um trabalho de artesão, tecido dias após dias, com ansiedade e coragem, vencendo todas as dificuldades.

 

2  EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO E DA  JURISPRUDÊNCIA ELEITORAL

 

     Ao nos reunirmos para comemorar 80 anos da Justiça Eleitoral, vale a pena traçar uma rápida, mas significativa evolução da legislação e da jurisprudência eleitoral, ao longo desse período.

     Nessa linha evolutiva, destacarei apenas  os temas mais relevantes que marcaram a nova face da Justiça Eleitoral, cujos efeitos benéficos estamos colhendo hoje.

     Merece destaque, na legislação:

1. A promulgação, em 1965, do atual Código Eleitoral (Lei n 4.737, de 15.7.1965).

2. Em 1970, tivemos a nossa primeira Lei das Inelegibilidades (LC nº 5, de 29.4.1970), depois substituída pela LC nº 64 de 18.5.1990, atual Lei das Inelegibilidades.

     Com essas leis de inelegibilidades, a Justiça Eleitoral começou a preocupar-se com as exigências da moralidade para o exercício de um cargo eletivo. Passou-se a combater o abuso de poder como forma nociva de romper com o equilíbrio das eleições.

3. Em 1971, promulgou-se a Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei nº 5.682, de 21.7.1971), substituída posteriormente pela atual Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096, de 19.9.1995).

4. Em 1974, foi editada a Lei de Transporte e Alimentação (Lei nº 6.091, de 15.8.1974).

5. Em 1997 surgiu a Lei das Eleições (Lei nº 9.504, de 30.9.1997), para atender antigas reivindicações de todos contra a prática nociva das leis do ano, que sempre surpreendiam os candidatos e os eleitores com novas práticas a favor do poder dominante.

     Para aperfeiçoar a Lei das Eleições, foram feitas duas minirreformas com as Leis nº 11.300/2006 e nº 12.034/2009.

6. Em 2010, atendendo anseio popular manifestado em longo abaixo assinado, o Congresso promulgou a Lei da Ficha Limpa (LC nº 135, de 4.6.2010).

     Ao ser votada, no Supremo Tribunal Federal, a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa disse o ministro Lux Fux, elator do processo, garantiu que tal lei complementar “não fere o núcleo essencial dos direitos políticos, na medida em que estabelece restrições temporárias aos direitos políticos passivos, sem prejuízo das situações políticas ativas. O cognominado desacordo moral razoável impõe o prestígio da manifestação legítima do legislador democraticamente eleito acerca do conceito jurídico indeterminado de vida pregressa, constante do art. 14, § 9º, da Constituição Federal”.

     No meio dessas leis, impõe-se destacar a instalação da Assembléia Constituinte e a promulgação da Constituição de 1988, que reforçou o papel da Justiça Eleitoral no Estado Democrático de Direito.

     Não menos importante do que essas leis, a jurisprudência eleitoral cumpriu seu papel renovador, elevando o Direito Eleitoral como ciência autônoma que merece ser mais estudada, a partir dos bancos das faculdades. A interpretação eleitoral tem sofrido um processo evolutivo constante, principalmente com o objetivo de integrar a Justiça Eleitoral ao propósito de efetivação das normas constitucionais e do estado democrático de direito.

     Ao abordar o tema da imprevisibilidade das decisões judiciais, Erick Wilson Pereira, em sua obra sobre interpretação das normas constitucionais, esclarece:

“A evolução jurisprudencial deve ser constante em face das diversas formas que o poder incide no processo eleitoral.

[...]

A constante imprevisibilidade das decisões judiciais eleitorais fortalece o Estado Democrático de Direito na medida em que se precisa revelar direitos localizados de determinados grupos políticos dominadores.” (Pereira, Erick Wilson. Direito eleitoral: interpretação e aplicação das normas constitucionais-eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2010, p.97).

     Ressaltarei os pontos mais altos da jurisprudência eleitoral, pelos temas propostos pela Constituição Federal e pela Lei das Eleições, sabendo-se das suas características fortes que a distinguem dos outros ramos do direito, como verdadeiro commom law, que traz na força dos precedentes a mais correta orientação para o julgador.

     Tivemos, então:

a)  Impugnação de mandato eletivo

     Vale registrar os debates que agitaram a doutrina e os tribunais sobre o procedimento a ser adotado para o desenrolar dessa ação, que veio prevista na Constituição de 1988. Desse período, serviu de paradigma o conhecido acórdão nº 12.030/TSE, que julgou um recurso especial de Felixlândia/MG, no qual o relator (Ministro Hugo Gueiros)  assinalou a necessidade de instrução do pedido pela via ordinária e não somente o julgamento com base na prova essencialmente documental, quase sempre forjada com centenas de declarações uniformes (JTSE 3/92/229).

     Os julgamentos das ações de mandato eletivo trouxeram à baila, com mais ênfase do que nas ações de investigação judicial, o debate sobre o abuso do poder econômico.

     A jurisprudência sobre o abuso do poder econômico começou preocupada em assinalar o nexo de causalidade entre a ação praticada pelo candidato e o resultado da eleição. Nesse caso, destacou-se o julgamento do Caso Bimba (acórdão 11.725 – Rosário).

     Em seguida, com a mesma orientação:

     Ação de impugnação de mandato eletivo. Abuso de poder econômico. Responsabilidade do candidato beneficiado. Prescindibilidade. Nexo de causalidade. Matéria fática. Caso Cândido Sales (BA). (JTSE 4/2000/257)

     Depois, veio o conceito de potencialidade: “não houve prova de ter a doação de uma kombi a forte probabilidade ou a isolada potencialidade de influir no resultado das eleições.” (Acórdão 16.242/GO/ 2001).

     Com a Lei da Ficha Limpa, novo critério de avaliação foi inaugurado para avaliação do abuso do poder econômico: a gravidade da infração.

b) Captação ilícita de sufrágio – artigo 41-A

Artigo acrescido pela Lei 9.840/1999.

     O artigo 41-A da Lei das Eleições representa uma conquista popular e o anseio de imprimir às eleições o sentido da ética e da ausência de qualquer atividade de corrupção.  Esse artigo nasceu da manifestação espontânea de milhares de eleitores preocupados em  tornar o voto cada vez mais uma atitude pessoal e independente.

     A jurisprudência do TSE quanto ao artigo 41-A orientou-se no sentido de imprimir maior rigor possível à interpretação dessa norma, considerando como captação ilícita de votos toda promessa ou entrega de bens, de qualquer valor, em troca de voto.

     Os primeiros julgados do TSE a respeito da captação ilícita de sufrágio previam:

     Para caracterização de conduta descrita no art. 41-A da Lei 9.504/97, é imprescindível a demonstração de que ela foi praticada com o fim de obter o voto do eleitor. (Ac. Nº 19.229. de 15.2.2001 – São Lourenço/MG).

     E continuou interpretando:

     Resta caracterizada a captação de sufrágio prevista no art. 41-A da Lei 9.504/97, quando o candidato praticar, participar ou mesmo anuir explicitamente às condutas abusivas e ilícitas capituladas naquele artigo. (Ac. 19.566, de 18.12.01 – Matozinhos/MG).

     A Lei 12.034/2009, acrescentou o parágrafo primeiro ao art.41-A, disciplinando que: “Para caracterização da conduta ilícita, é desnecessário o pedido explícito de votos, bastando a evidência do dolo, consistente no especial fim de agir.”

     Atualmente, a jurisprudência do TSE orienta-se no sentido de “não exigir, para a configuração da captação ilícita de sufrágio, o pedido expresso de votos, bastando a evidência, o fim especial de agir, quando as circunstâncias do caso concreto indicam a prática de compra de votos.” (RO nº 1510/AP. Rel. para acórdão: Min. Arnaldo Versiani. DJE de 23.8.2012).

c)  Condutas vedadas

     Como variação do abuso de poder político, a tipificação das condutas vedadas representou um passo decisivo do anseio ético de eleições equitativas.

     A jurisprudência inicial do TSE orientou-se em desconsiderar a potencialidade da conduta para influir no resultado do pleito. Posteriormente, passou-se a admitir a aferição da potencialidade, diante do caso concreto.

d) Artigo 30-A

     O acréscimo deste artigo pela Lei 12.034/2009 demonstrou a preocupação da JE em punir a captação ilícita de recursos para campanha eleitoral. Com o mesmo espírito do art. 41-A, esta norma visa a garantia do equilíbrio das eleições sem a interferência do poder econômico.  A LC 135/2010 ainda reforçou mais o rigor deste artigo ao punir com a cassação do diploma o candidato que realiza captação ou gastos ilícitos de recursos para fins eleitorais, além de decretar-lhe a inelegibilidade por oito anos.

e) Fidelidade partidária

     Depois do reconhecimento da fidelidade partidária em nosso sistema eleitoral, em decisão  histórica do STF, em 4 de outubro de 2007 (MS nº 26.602, MS nº 26.603 e MS nº 26.604), o TSE, com respaldo no art. 23, XVIII, do Código Eleitoral, publicou a Resolução nº 22.610, de 25 de outubro de 2007,  para disciplinar o processo de perda de cargo eletivo por infidelidade partidária, bem como o procedimento de desligamento do partido político a que o mandatário estiver filiado.

 CONCLUSÃO

     A atuação do Tribunal Superior Eleitoral, em nítida manifestação de ativismo judicial, foi a marca mais sentida da jurisprudência nesses 80 anos da Justiça Eleitoral. Com resoluções e decisões que supriram a omissão e a tibieza do legislador, o Tribunal Superior Eleitoral conferiu à Justiça Eleitoral o prestígio que o jurista francês, Antoine Garapon já previra: “A justiça tornou-se o lugar de eleição das paixões democráticas e o tribunal o último palco do controle político”.

     Walter Costa Porto escreveu um belo livro sobre os fatos jocosos da Justiça Eleitoral no Brasil, dando-lhe o título extraído de uma frase do senador Zacarias de Góes: A MENTIROSA URNA.

     Hoje, aos 80 anos da instalação da Justiça Eleitoral, a mais acalentadora certeza que temos é saber que as urnas não mentem mais. São expressões da verdade e da vontade popular. Após esses anos de existência, a constatação da verdade das urnas é uma vitória da democracia, uma vitória de todo o cidadão brasileiro, uma vitória nossa.   

     A justiça eleitoral fez-se assim depositária da confiança de quem deseja viver a democracia.

Palestra proferida pelo desembargador Lourival Serejo, na sede do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão, em 22.10.2012



Lourival Serejo

     Lourival de Jesus Serejo Sousa nasceu na cidade de Viana, Maranhão. Filho de Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa. Formou-se em Direito, em
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