Há quatro séculos, a cidade de São Luís levanta-se iluminada sobre a Baía de São Marcos e acolhe, em seu seio, uma população mesclada de gente de todas as cores, com sonhos e ambições distintas. No começo, eram índios, portugueses, franceses, holandeses, escravos; e hoje, são todos maranhenses e brasileiros que recebem visitantes e moradores do mundo inteiro, já acostumados com a beleza e as ruas desta cidade, que nos abriga há 400 anos. Entretanto, se nos dispusermos a buscar para além da linha de visibilidade, veremos que outra cidade desponta, distinta desta com a qual convivemos. É sobre essa cidade invisível que venho falar, sobre seus mistérios e seus fantasmas, já tão bem descritos por outros escritores.
Ver o invisível é privilégio dos poetas. É por isso que me vou valer dessa capacidade de vidente que eles têm para desvendar esses mistérios de quatrocentos anos dessa cidade desconhecida.
Onde está essa cidade invisível?
Com certeza, ela está em “alguma parte alguma”, como diz o poeta Ferreira Gullar: pode estar embaixo ou pode estar em cima, na poeira do tempo, pairando sobre nossas cabeças: “fora/ no alto/ nos céus de São Luís/ o tempo zune/ luzindo acima dos telhados/ manchados de musgos”.
Ultrapassar os muros dessa cidade secreta é como enfrentar uma esfinge com seu enigma, segundo o poeta José Chagas:
São Luís, quem é que te adivinha,
ou te decifra dentro do passado,
se cada qual traça uma torta linha
e por ela envereda, deslumbrado.
[...]
Quem te sabe o segredo e o que se aninha
nesse teu seio histórico, insondado,
nesse abismo de lendas, ó rainha
de misterioso e lírico reinado?
(A esfinge do passado)
Por onde se entra para chegar à São Luís invisível?
Não há entrada fixa. Pode ser pelo túnel da Fonte do Ribeirão, pelas bananas podres de Gullar, pelo Jato noturno de Nauro Machado ou partindo dos mirantes e dos telhados de Chagas. O passaporte é a inspiração e a sensibilidade de cada aspirante que deseja aventurar-se pelas belezas invisíveis de uma existência de 400 anos.
É preciso ter calma e espírito desimpedido dos tormentos diários para procurar a beleza do invisível. Procurando com atenção, diz o poeta Luiz Augusto Cassas,
Talvez encontreis por aqui: os pastéis
Do Moto Bar; a avareza
de Serafim; a visão tridimensional
de Zuzu Nahuz; a nota estridente
(na alma) do pistom
do cego João; as grossas sobrancelhas
de Rubem Almeida; a ressaca
de Erasmo no abrigo.
(O Imperador do Largo do Carmo)
Ora, direis, são todos mortos. Certo perdeste o senso, como disse Bilac sobre o ato de ouvir estrelas. Mas não importa. Quando Bandeira Tribuzzi fez sua Meditação da ponte, apoiado no gradil de uma ponte que só ele via, refutou os incrédulos com este argumento: Direis que não existe/ como se isso fosse essencial/ (sempre a mesma incapacidade/ de ver além dos acidentes...) E não se trata só de ver e ouvir, porém de sentir e reencontrar-se, do modo como o autor do Poema sujo constatou, em seu Reencontro:
Estou rodeado de mortos.
Defuntos caminham comigo na saída do cinema
São muitos,
Sinto a presença ativa das magnólias
Queimando em seu próprio aroma.
(Reencontro)
Essa visão do sobrenatural faz lembrar João Francisco Lisboa, quando assistiu à Procissão dos ossos, na véspera de um dia de finados, o qual teve “uma súbita vertigem e estranha alucinação” e passou a admirar um desfile de almas “sob a forma visível”, à sua frente, por um longo espaço de tempo, o que lhe permitiu ver onde o público não via nada, além da realidade presente.
Quem se dispuser a transitar pela São Luís oculta terá o privilégio de deparar-se com vultos da nossa história, das nossas lendas e das nossas letras: a carruagem de Ana Jansen; o desembargador Pontes Visgueiro, louco de paixão senil, à procura de sua Mariquinhas; o padre Antônio Vieira; os irmãos Azevedos, Aluísio e Artur; e com tanta gente mais, que formaria uma outra procissão. Basta atentar para o vozerio que se ouve nas noites silenciosas, para se ter uma ideia de quantas pessoas habitam esse mundo misterioso e ignorado, o qual foi sintonizado com precisão, pela alma sensível de Nauro Machado:
Todas as noites, por sobre a cidade,
Ouve-se o ribombar de um fim-de-mundo:
solitário piloto os céus invade,
quase aurora, por sobre esta cidade,
babando estrelas, trasvairando o imundo.
(Jato noturno)
Dentre tantos fantasmas que circulam por essa cidade invisível, um dos que mais chamaram atenção do romancista Pedro Braga foi o próprio Daniel de la Touche, que sempre era visto pela Rua 28 de Julho, fato que foi celebrado em trecho do seu romance O filósofo da rua do pecado:
Viam, de quando em quando, caminhando no escuro da noite, pelas ladeiras e escadarias do núcleo central, um homem alto e magro, camisa branca de punhos de renda, haut-de-chausse, botas de cano alto e meias de seda, vestido à moda francesa do século XVII, sem capa, no entanto, por causa do calor. Seria Daniel de la Touche de la Ravardière que tentara fundar a França Equinocial, e permanecera ali e andava durante altas horas, se esgueirando por entre ruelas escuras como breu e ruas mal iluminadas do centro, não querendo ser visto, vindo da casa de uma amante que por ali mantinha.
(O filósofo da rua do pecado)
A noite é o momento oportuno para desvendar os segredos da cidade secreta, principalmente as noites de lua, mesmo diferente das antigas noites de placidez e romantismo. Mesmo só tendo uma lua espremida entre prédios ou ofuscada por luzes fortes da cidade, mesmo assim, o mistério do luar ainda faz seu efeito, como cantados por Bandeira Tribuzzi:
Quem conhece as noites de lua
e o mistério que ocultam vário,
já divisou como no espelho
da cidade o passado é claro:
quem pisa as calçadas da noite
ouve – rumor imaginário –
Bequimão com sua revolta,
Vieira e o verbo literário.
(As vozes)
O local mais privilegiado para se ter contato com a cidade invisível é o mirante de um sobrado antigo. Todos os mirantes são pontos de observação desse outro mundo da invisibilidade. José Chagas que o diga:
Os mirantes têm todos um segredo
que não chega aos ouvidos de ninguém.
(O mistério dos mirantes)
Os segredos desses mirantes vêm da luz que recebe das estrelas e dos ecos das paredes dos velhos sobradões que abrigaram várias gerações, entre famílias felizes e infelizes. O poeta Manuel Lopes também incorporou esse ambiente, quando fez seu Canto Puro para São Luís:
Os que te viram
estão além das tuas torres e dos oitões batidos
de sóis e de luares
e, sonâmbulos, te contemplam
dos mirantes do esquecimento.
(Canto puro)
Sobre o mistério das vozes – “perdidas vozes que perambulam/ de antigas serenatas para a amada”, como disse o mesmo Manuel Lopes – , José Chagas nos confirma sua ocorrência pela certeza que se desprende de sua poesia:
O eco das paredes traz ainda
longínquas vozes imemoriais;
quem as escuta sabe a força advinda
de remotíssimos mananciais....
(O eco das paredes)
E por falar em vozes, retorna Bandeira Tribuzzi para nos enlevar:
Vozes que falam do martírio,
de terror ou de obscuro medo,
vozes que murmuram poemas
ou que se escondem no silêncio
para conspirar liberdades.
Contra o duro trono avarento,
vozes puras como a cidade
cuja grandeza vence o tempo.
(As vozes)
A ansiedade de quem toma conhecimento dessa dimensão misteriosa da nossa cidade de 400 anos é o acesso para o qual já apontei todos os detalhes. Volto a insistir que o visitante tem que se despojar de tudo para, num passe de mágica, envolver-se no espaço do invisível. Se possível, deve despojar-se até da vida, para ficar mais desembaraçado e leve e, depois, fazer a grande ruptura com a realidade, na forma recomendada pelo poeta Nauro Machado:
Esta não é São Luís, a que é real.
Tua cidade, a buscas noutro espaço,
entre milhões de postes telegráficos,
e telefones, tumbas solitárias
mostrando o número a dedos e ouvidos.
Trocando tudo, como desde a infância
fazes no sangue, poço sem memória
sobre cadáveres de velocípedes
pedalando do outrora as tuas pernas,
fica adiante a cidade que buscas.
(Ruptura)
Pronto. Está delineada a cidade e os caminhos para chegar à São Luís oculta. Depois de ouvirmos tantos poetas, creio que não há mais dúvida da existência de outra São Luís, que bem poderia ter sido incluída por Ítalo Calvino na relação de suas cidades invisíveis. Agora é só entrar e contemplar 400 anos de mistérios.
Por: Lourival Serejo
Lourival de Jesus Serejo Sousa nasceu na cidade de Viana, Maranhão. Filho de Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa. Formou-se em Direito, em
Saiba mais