A madrasta sempre representou o símbolo da maldade no imaginário popular, alimentando histórias que todos ouvimos na infância, quando adormecíamos contristados com o destino de suas vítimas ou satisfeitos com a derrota que sofriam no final feliz em favor das cinderelas.
Dessas histórias, a de que sempre me lembro e todos a conhecem é aquela em que havia uma cantiga mais ou menos assim: Criados do meu pai/ Não me cortem meu cabelo/ Minha mãe me penteou/Minha madrasta me enterrou.
Era a história da menina enterrada pela madrasta tendo seus cabelos crescidos como belas touceiras de capim. Essa relação da madrasta com seus enteados é tão importante que pode conservar ou acabar um casamento. Por mais apaixonado que um marido esteja, pode virar a mesa e optar pela parentalidade (pai/filho) em desfavor da conjugalidade (marido/mulher). Vargas Llosa, com sua genialidade de escritor, tratou desse conflito com muita percuciência, em uma de suas obras, Elogio à madrasta.
Mas, ao lado dessas megeras repudiadas, temos madrastas que são verdadeiras santas, pois criam seus filhos e os do marido, sem qualquer distinção. E do mesmo modo são amadas por eles.
Lembro-me de uma vizinha, filha prendada de um respeitável comerciante, que se casou com um viúvo e seus sete filhos, de dois a quinze anos de idade. Do seu casamento, nasceram mais dois filhos. O tratamento que ela dispensava aos enteados era igual ao que dedicava aos seus dois filhos. O amor e respeito que todos os enteados dispensavam a ela era o mesmo que se dedica a uma mãe. Ali estava uma madrasta vocacionada.
Rolf Madaleno, em trabalho de sua autoria, reconhece a existência de “estereótipo que representa o padrasto ou a madrasta como pessoas indesejáveis, e até tidas e havidas por cruéis.”1
Com sua habitual capacidade, o autor analisa o novo fato que mobiliza essas famílias reconstruídas quef superam os conflitos surgidos em prol de uma nova relação de afeto, a família sociológica que se assenta “no afeto cultivado dia a dia, alimentado no cuidado recíproco, no companheirismo, na cooperação, na amizade, na cumplicidade.”1
A relação que se estabelece entre a madrasta ou o padrasto e seus enteados é decisiva para a estabilidade do futuro casamento. É um desafio que se acrescenta às dificuldades comuns a qualquer casamento. Na verdade são dois círculos de relação dentro do contexto familiar. Círculos que se interpenetram e reagem reciprocamente.
Daí a dificuldade de celebrar-se com êxito essa família assim constituída, pois em sua grande maioria, ela evolui para uma situação tensa de relacionamentos, provocando até o fim de muitos casamentos.
Para ilustrar a presente situação, invoco, na literatura universal, as célebres desavenças entre a mulher de Dostoievsky, Anna Grigorievna, e o enteado dele, Pavel, o que causava muitos dissabores ao genial escritor, apesar de nunca ter afetado o relacionamento do casal, pela confiança que havia entre ambos.
O único momento em que nosso Código Civil trata das figuras do padrasto e da madrasta é no artigo 1.962, inciso III, em que a constatação de relações ilícitas entre essas figuras e os respectivos enteados(as) autoriza a deserdação. A jurisprudência, por sua, vez, já vem admitindo a adoção do apelido da família do padrasto pelo enteado, com justificação plausível pelo espírito do art. 58 da Lei de Registros Públicos.
Na vara de família tive oportunidade de ouvir súplicas de homens que estavam se separando de suas mulheres, com filhos de outra relação, os quais solicitavam oportunidade de visitarem as crianças pelo afeto que dedicavam a elas, mesmo não sendo seus filhos biológicos.
Nestes casos pode-se falar, como pretende a jurista Argentina Maria Cristina Camiña, em pai e mãe afins, resultado do que ela denomina de uma “família ensamblada”, constituída por uma união em que um ou ambos integrantes têm filhos de um matrimônio anterior.1 Vejo, ainda, nessa hipótese, mais do que afinidade, que é conceito legal; trata-se de autêntica afetividade filial, afetividade materna ou paterna conforme o caso.
O ângulo que ressalto nesta breve análise restringe-se ao sentimento de afeto que se estabelece entre a madrasta e/ou o padrasto e seus enteados, numa perfeita relação de filiação sob dupla face: a afinidade e a afetividade.
Estabelecida essa relação de afeto, dispensa-se inclusive a adoção, até por suas conseqüências psicológicas e sociais,1 pois a relação que se consolida com o correr do tempo supera qualquer distinção entre o filho biológico e o enteado.
1 Madaleno, Rolf. Filhos do coração. RBDF v. 23/22.
Lourival de Jesus Serejo Sousa nasceu na cidade de Viana, Maranhão. Filho de Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa. Formou-se em Direito, em
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