SANGUE NA PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA

     Como se falar em sangue, na proclamação da República, se o povo – bestializado, na expressão de Aristides Lobo – nem sabia o que estava acontecendo? Para Laurentino Gomes  (1889), a proclamação da República foi mais consequência do desmoronamento da Monarquia do que o resultado dos ideais das campanhas republicanas. 
Efetivamente, não houve resistência de espécie alguma ao gesto do marechal Deodoro da Fonseca. Sem violência, não poderia haver sangue. Mas houve. 
     O sangue a que eu me refiro vamos encontrar no romance Miragem, do escritor maranhense Coelho Neto. 
     Nesse livro, o Príncipe dos Prosadores Brasileiros desenvolve um enredo que retrata a vida do soldado Tadeu, maranhense, que, dentro do quartel, foi deslocado para uma operação militar, no dia 15 de novembro de 1989, sem saber do que se tratava. Nem ele nem seus companheiros sabiam. No quartel, há dias circulavam boatos sem qualquer consistência.
     Aqui, então, surge o poder da literatura, da ficção, para criar um detalhe, no meio daquela encenação toda. E o fez pintando em cores vermelhas, nesta cena que se destaca no meio da agitação dos militares:

Um moleque, doceiro, que fazia o seu comércio naquela barafunda, estacou de repente em compadecido espanto diante de Tadeu que arquejava, com a cabeça no braço apoiado à parede, firmando-se à carabina. De quando em quando, em frouxos arrevessos, saíam-lhe da boca golfadas de sangue. 
O doceiro dirigiu-se a um soldado e disse-lhe aturdido:
– Olha aquele ali. Está botando sangue pela boca. 
..............................................................................
Uma pasta de sangue vermelhejava na calçada e o mísero ansiava, tonto.

     Ouvi, em um congresso jurídico, uma professora dizer que o romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis, era uma verdadeira obra de direito constitucional, porque o enredo desse livro retrata o ambiente social e a repercussão nas relações familiares e comerciais da chegada de uma nova forma de governo: a mudança da Monarquia para a República. O povo nada entendia, estava indiferente à retirada do imperador, tão admirado pela população, do seu palácio imperial. Nesse entrelaçamento de fatos narrados pelo Bruxo de Cosme Velho, é sempre lembrado o admirável e humorístico caso da mudança da tabuleta de uma confeitaria, cuja pintura se realizava naquele dia 15 de novembro. O dono ficou na dúvida se mantinha a inscrição antiga de Confeitaria do Império ou mudava para Confeitaria da República. Ao encontrar a tabuleta já pintada, optou por mandar repintar para pôr o novo nome.   
     Esse poder que a literatura tem de retratar os detalhes pessoais dos fatos, encontra-se em vários romances históricos, como Guerra e paz, de Tolstoi. 
     A leitura do romance de Coelho Neto me convence de que ele seja mais intenso do que a obra de Machado de Assis para compreender a que ponto chegava o desconhecimento da sociedade quanto ao verdadeiro sentido do ato de Deodoro. Um soldado, o maranhense Tadeu, com seus colegas de farda, estavam dentro de um quartel, agitados por informações desencontradas, até que, às quatro horas da madrugada do dia 15 de novembro foram acordados com o berro da corneta e, em seguida, alertados de que iriam participar de uma operação militar. Até então, ainda não sabiam de nada.
     Sobre o valor literário de Miragem, a crítica dividiu-se, na ocasião, entre elogios e observações desairosas. Mas ninguém podia negar a capacidade e a ousadia do autor em refletir de maneira realista o lado desconhecido no contexto social e político da transição das formas de governo, no Brasil de 1889, entre a Monarquia e a República. 
     Ciente do valor histórico e literário do romance de Coelho Neto, a Academia Maranhense de Letras está lançando agora a primeira edição maranhense do romance Miragem, da autoria do incompreendido e esquecido Coelho Neto. 



Lourival Serejo

     Lourival de Jesus Serejo Sousa nasceu na cidade de Viana, Maranhão. Filho de Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa. Formou-se em Direito, em
Saiba mais

Contatos

  • email
    contato@lourivalserejo.com.br

Endereço

Desembargador Lourival Serejo