Tragédias americanas: O caso da boate pulse

     Embora com atraso, trago esta contribuição ao debate em torno desse lamentável caso ocorrido em Orlando, Flórida, no mês de junho, o  qual tirou a vida de 49 pessoas e deixou 53 feridos.

     Destacarei três vertentes que o fato desafia: a homofobia, a venda indiscriminada de armas e a interpretação literal da Emenda nº 2 da Constituição americana.

     A manifestação de homofobia, neste caso, por tratar-se de boate gay, é evidente, até pela tradição familiar do assassino, segundo a qual todos os homossexuais estão condenados ao fogo do inferno, conforme declarou seu próprio pai. 

     Ocorre que a homofobia do assassino tem um viés particular, diagnosticado pelo psiquiatra e escritor Contardo Caligaris, em sua crônica na Folha de São Paulo: "O assassino foi para a boate para matar a parte de si que, segundo o pai, merecia as chamas do inferno". Há evidências de que o assassino era homossexual, embora casado. Pode-se acrescer a essa particularidade, o recrudescimento do ódio, que vem marcando o  atual estágio da sociedade americana.

     Ao se destacar, como segunda causa, a liberdade do cidadão americano adquirir e usar armas à vontade o problema toma um aspecto diferente e polêmico. Não bastaram as tragédias mais recentes que antecederam à da boate Pulse (Escola de Sandy Hook (2012), San Bernardino (2015), Colorado Springs (2015), Umpqua Community College (2015), Chattanooga (2015),  Igreja em Charleston (2015)) para inibir e convencer os americanos de que o uso desenfreado de armas continuará provocando o aparecimento de outros lobos solitários, e outras mortes, e outros dramas.

     Os apelos do presidente Obama perdem-se no ar. A posição do Congresso é inabalável. Nada convence os políticos conservadores de que o comércio de armas deve ser controlado. A ganância do capitalismo não quer abdicar da desenvoltura de um comércio que rende seis bilhões de dólares no mundo inteiro. As indústrias bélicas americanas alimentam-se dessa prerrogativa individual e das guerras espalhadas no mundo inteiro. Acusam Obama de indeciso porque não manda soldados para combater o Estado Islâmico. Querem guerra para alimentar o comércio das armas. E novas tragédias ocorrerão. Vejam agora: ainda não terminaram de enterrar os mortos da Pulse e já outra tragédia se apresenta em Dallas, esta movida pelo ódio racial, mas facilitada pela disponibilidade das armas sofisticadas.

     A última vertente da causas do massacre da boate Pulse daria uma infinidade de linhas para ser discutida. Dir-se-ia que o povo americano é louco pela Constituição, parodiando uma expressão que já se discute dos "loucos por Direito"? Por que teimam em ater-se à letra de lei se tantas coisas aconteceram depois da Emenda nº 2, promulgada numa época em que não havia terrorismo nem "loucos de todo o gênero"? Até o aborto já foi liberado, as uniões homoafetivas reconhecidas, a desigualdade racial considerada ilegal, em interpretações avançadas feitas pela Suprema Corte, e só o direito de usar armas é intocável porque está na letra da Constituição. É o originalismo puro (interpretação conforme a vontade do legislador à época) que já matou milhares de pessoas e continuará a matar, tudo em defesa de uma liberdade extrema e de um comércio insaciável. O bem comum cede espaço para o individual. O cidadão (singular) é mais forte do que a sociedade (plural).

     Atrelar-se ao texto da Emenda nº 2 (o direito do povo de possuir armas não poderá ser impedido) é contrariar todos os avanços da hermenêutica no sentido de manter os textos legais compatíveis com a evolução dos valores sociais. É a chamada mutação constitucional. Essa oxigenação de valores, inclusive, é o que mantém viva a Constituição americana, promulgada há mais de duzentos anos.

     Não é preciso ser profeta para prever que sucessivas mortes voltarão a ocorrer. O presidente fará novo apelo em favor da limitação da venda de armas e tudo continuará como sempre.



Lourival Serejo

     Lourival de Jesus Serejo Sousa nasceu na cidade de Viana, Maranhão. Filho de Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa. Formou-se em Direito, em
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