Formação do Juiz

          Com Formação do Juiz: anotações de uma experiência, Lourival Serejo está num confessionário. Mas usando uma técnica mágica, inverte os papéis. Por trás do reposteiro, ele é o confessor a ouvir-se onipresente a si mesmo, ao longo de quase 30 anos, quando iniciou a carreira de juiz, nos idos de 1981. No memorial, a tríade identidade de testemunha, narrador e protagonista unifica-se na pessoa do juiz-escritor.

  • Editora: Juruá Editora
  • Autor: LOURIVAL SEREJO
  • ISBN: 9788536227955
  • Origem: Nacional
  • Ano: 2010
    Número de páginas: 124
  • Acabamento: Brochura
  • Formato: Médio

 

PREFÁCIO

O diário, como gênero literário, não medrou nas letras jurídicas. O desempenho da função judicante, de denso cunho pessoal, as mais das vezes subordinada ao cogente sigilo dos fatos humanos, decerto que frustra, inibe e limita a autorrevelação. Sim, porque um diário é antes de tudo uma inconfidência à revelação de fatos humanos, pessoais, vivenciados pelo memorialista, na resolução heterônoma de querelas, com repercussão no mundo fenomênico.

Sem olvidar escritores egrégios desta matriz literária, o Maranhão tem dois mestres do gênero: Humberto de Campos e Josué Montello. O “Diário Secreto”, publicado na década de 1950, hoje desconhecido, é considerado por Josué a obra perdurável, talvez a obra prima de Humberto, não fora os excessos com que registrou as misérias humanas.

Julgo que escrever um diário equivale a ajoelhar-se perante um confessionário. É um ato de humildade. Mais do que isso: implica persignar-se e revelar-se numa confissão coletiva. É como vencer o pudor do corpo e despir-se, equivale a vencer o pudor da alma e revelar-se.

É evidente que não cabe nesse perfil os diários egocêntricos, de culto ao ego, em que as palavras que revelam ocultam, escondem...

Talvez por isso José Saramago, fazendo reparo a esse gênero literário, afirme que escrever um diário “é como olhar num espelho de confiança, adestrado a transformar em beleza a simples boa aparência, pois ninguém escreve um diário para dizer quem é”.

Com “Formação de Juiz: anotações de uma experiência”, Lourival Serejo está num confessionário. Mas usando uma técnica mágica, inverte os papéis. Por trás do reposteiro, ele é o confessor a ouvir-se onipresente a si mesmo, ao longo de quase 30 anos, quando iniciou a carreira de juiz, nos idos de 1981. No memorial, a tríade identidade de testemunha, narrador e protagonista unifica-se na pessoa do juiz-escritor.

Para compreender o diário de um juiz, penso que há que ter o leitor uma pré-compreensão do fenômeno jurídico, ainda que superficial, ainda que profana.

O fenômeno jurídico foi compreendido superiormente pelo mestre Miguel Reale, ao intuir, num momento de grande iluminação, que o direito é fato, valor e norma. Desde cedo compreendi que o fato – o fato jurígeno – para o juiz de direito, abstraindo as objeções positivistas, por injunção da realidade, acaba por ser a premissa maior, ocupando posição cimeira na relação jurídica.

Por isso, o fato é que calibra, é que modula, é que define o direito a ser aplicado. Sem trocadilho, o juiz de direito, antes de tudo, é que é o juiz de fato. Daí a importância do juiz de direito nas comarcas insalubres, rurais, do interior do Estado, que por imperativo da factualidade cotidiana, para solução das querelas, é impelido a construir muitas vezes a solução do litígio, a norma individual, ad hoc, em detrimento da norma abstrata estabelecida na lei.

Só quem se defronta com o fato humano bruto, in natura, pode compreender a dura missão de julgar questões envolvendo indivíduos cuja existência está, às vezes, no limite de saber até mesmo se têm ou não dignidade humana.

Lourival Serejo, já eternizado nas letras, agora nos brinda com “Formação de juiz: anotações de uma experiência”, uma obra de cunho deontológico, interdisciplinar, de significativo conteúdo humano e de elevada expressão psicológica, que se interpõe entre a ciência jurídica e a literatura, embora escrita sob a forma de um diário. E que agora ganha relevo e atrai o interesse da sociedade, nomeadamente de profissionais da área jurídica, por haver o Conselho Nacional de Justiça aprovado, em setembro de 2008, o Código de Ética da Magistratura Nacional.

Mais que a análise de acontecimentos do dia a dia, em notas pessoais, Lourival faz o registro de reflexões sinceras, sofridas, sobre a dura missão que se impõe ao magistrado de carreira, que é obrigado, no insalubre Maranhão, a ser itinerante, a percorrer longínquas comarcas, ao longo das décadas, até chegar ao paço.

Para frustração da maioria dos juizes, a temporalidade da vida, o tempo biológico, em “passos” perdidos, aborrecidos, esquecidos, nos percalços das comarcas, é insuficiente para alcançar o “paço”. Constatam, num dado momento, que o tempo da vida, a dureza inexorável da condição humana, as limitações sócio-afetivas, a carência das amizades, a baixa inteligência emocional, sabotaram-lhes o promissor futuro. De repente, chegam ao fim da carreira amargurados, mediocrizados, humilhados...e quase sempre sem amigos.

Para esses magistrados, embora longo, o tempo da profissão foi insuficiente para a promoção. Completados 70 anos, constatam que é tempo de ir embora. A vida fértil, fecunda, ágil, da mocidade consumiu-se... Ao termo da profissão, muitos, desiludidos, frustrados, veem o Tribunal como uma miragem, um sonho distante, inatingível, irrealizável.

As “Anotações” de Lourival Serejo, registradas em forma de diário, trazem a lume os passos de um magistrado de carreira, de larga experiência, sereno, equilibrado, humilde, um pouco tímido às vezes, embora firme e seguro em seus atos, que em mais de duas décadas vai construindo seu caminho luminoso, glorioso, virtuoso, iniciado como juiz da Comarca de Arari (1981) e que chega ao paço, ao apogeu, com a promoção por merecimento a desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão (2007).

Aqui estão as notas que pela densidade ética e estética, acrescidas de sabedoria e ponderação, registradas no dia a dia, compõem no seu substrato um código de ética para quem é e quem queira ser magistrado.

Em 24 de outubro de 1990, registra Lourival que “o magistrado deve desenvolver sua intuição com finura de um maestro. Precisa adquirir dons de previsão, para saber até onde deve ir nas suas decisões. O bom senso ainda é a arma capital para sair-se bem em sua judicatura. Os ouvidos de um magistrado precisam aprender a arte de ouvir aquilo que certas pessoas insistem em dizer-lhe.” Em essência, aí está o princípio da prudência, atributo material da magistratura, agora positivado no artigo 25 do Código de Ética da Magistratura, segundo o qual ‘especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às conseqüências que pode provocar.”

Exorta o Código de Ética: “A obrigação de formação contínua dos magistrados estende-se tanto às matérias especificamente jurídicas quanto no que se refere aos conhecimentos e técnicas que possam favorecer o melhor cumprimento das funções judiciais” (art. 31). Em nota premonitória, advertia a 28 de outubro de 1991 o autor: ‘Quem estuda só direito não sabe direito, já foi dito por Holbach. E é uma verdade indiscutível. As outras ciências relacionadas com a especialidade que se elegeu fornecem esclarecimentos suficientes para dominarmos aquela matéria com profundidade. É pelo conhecimento multidisciplinar que podemos formar a visão maior de que o jurista precisa.”

No atual estágio civilizatório, a cortesia deve ser um apanágio não apenas da magistratura, mas do ser humano. De acordo com o Código de Ética, “O magistrado tem o dever de cortesia para com os colegas, os membros do Ministério Público, os advogados, as partes, as testemunhas e todos quantos se relacionem com a administração da justiça” (art. 22).

Mais que cortesia, há que exigir humildade do magistrado. Sim, porque humildade é continente, a cortesia é conteúdo. Daí a oportuna advertência que Lourival faz: “O juiz precisa ser humilde, no seu ofício como fora dele. Já vi juízes em humildade serem humilhados pelo tempo, pelas vicissitudes da vida, que são, muitas vezes, impiedosas. A humildade é, também, uma maneira silenciosa de ser altivo, sereno. Isso é que importa ao juiz.”

A obra ora dada a lume, impregnada de fecundas lições de vida, extraídas do dia a dia de um magistrado, deve atrair, mais que a curiosidade de quem não conhece os meandros da Justiça, a especial atenção dos juizes de carreira, que queriam sentir a vibração de um testemunho recheado de angústias, mas rico de reflexões sinceras sobre a árdua missão de julgar os semelhantes.

 

Leomar Amorim

Desembargador Federal

TRF 1ª Região

Conselheiro do CNJ

 


 

INTRODUÇÃO

Vistos e examinadas as presentes anotações, regozijo-me em publicá-las, na certeza de sua utilidade para os juízes que estão iniciando sua caminhada pelas sendas da magistratura.

Este livro parece um diário, mas não é um diário, pois não trata de impressões de caráter pessoal, não se refere a pessoas determinadas, nem desce a detalhes particulares como todos os diários. Apesar desse propósito, aqui e ali, se percebe a dificuldade em deixar de falar de si mesmo, pois este livro é feito de reflexões sobre a formação e as inquietações de um juiz, a partir de fatos ocorridos. Sem mencioná-los, registrei apenas as lições tiradas para o aproveitamento direcionado ao meu propósito.

Da leitura destas notas não se pode desconhecer o detalhe das datas, pois alguns problemas apontados, e até opiniões, já estão superados, por medidas legais (novas leis) ou administrativas. Entendi por bem mantê-las para avaliar a evolução dos fatos na formação de um juiz. Os conceitos emitidos refletem, também, a busca de maturidade. No começo, um juiz afoito e mais sonhador; depois, mais crítico e sereno.

 Recebi meu ato de nomeação e atirei-me para entrar em exercício imediatamente. Ninguém me disse nem me ensinou nada do que deveria fazer. Fui com a cara e pouca coragem. Fui aprender a ser juiz, aprender comigo mesmo, pelas minhas reflexões, meus estudos e meus erros.

Outro ponto, constantemente ressaltado nestas páginas, é o da promoção de juízes. As decepções que registro – e não pude evitar esse derrame de subjetividade – foram ocasionadas pela falta de critérios objetivos. Hoje já estamos em outro momento da magistratura, depois da Reforma do Judiciário e da criação do CNJ. Antes, não havia a quem reclamar as manobras promocionais. As divisões internas do tribunal – e isto ainda ocorre em todo o país – em grupos de mando, repercutiam diretamente na escolha dos candidatos a serem promovidos. Pior ainda se o candidato se identificava ou era identificado (por presunção) com algum grupo, por acaso ou por amizade com algum desembargador.

Pode-se aplicar ao CNJ a mesma expressão usada por Kasuo Watanabe, em relação aos juizados, quando disse que estes vieram atender às “litigiosidades contidas”. Também na magistratura, as insatisfações contidas comprometiam o bom relacionamento dos colegas e dos juízes com os tribunais. Outro fator importante para atender ao anseio de transparência nas promoções foi a adoção da votação aberta, que veio eliminar as mentiras e simulações.

Quando não havia escola judicial nem curso de iniciação funcional para novos magistrados, passava-se no concurso e pronto. Fiat lux! Era como se o concurso nos desse o conhecimento geral, daí surgirem as lendas e as piadas envolvendo juízes que não sabiam despachar um processo, até ouvirem, por acaso, o advogado habilidoso dizer bem alto, em cartório, o que ele deveria fazer. Se nos caíssem às mãos os “Modelos de Despachos e Sentenças”, de Sidnei Beneti, ou até mesmo um Código de Processo Civil, de Theotonio Negrão, estaríamos salvos de tantas dificuldades por que passamos.

A peculiaridade deste trabalho é que a problemática da formação do juiz é sentida pelo próprio magistrado, ao registrar suas impressões, avaliá-las e projetar soluções a partir do primeiro ano de exercício de suas funções, no longínquo 1981 até tornar-se desembargador, em 2007. Há, portanto, uma análise teórica e prática, a partir da vivência diária de um juiz, atirado na judicatura intensiva sem ter recebido sequer uma palavra de orientação ou incentivo. O protagonista destas páginas é exemplo típico do juiz que foi se aprimorando ao longo do exercício da magistratura, no meio de suas perplexidades, na luta existencial do vale a pena ou não. Quando ele emerge dessa luta, sustentada pela vocação, sai um juiz maduro e consciente do seu papel, entusiasmado com a função e preocupado com o problema da formação do magistrado.

Ao longo desta obra, três temas importantes são delineados e repetidamente analisados: a formação do juiz, as escolas judiciais e os desafios à atuação dos juízes. Para melhor análise, confiro a esses temas o devido destaque.

 

 


FORMAÇÃO DO JUIZ

 

O debate sobre a formação de juízes começa pelo recrutamento. A preocupação com a qualificação dos futuros juízes tem início com a seriedade do concurso de ingresso, afastando-se a mínima possibilidade de favorecimento pessoal de algum candidato. A busca pelo mérito – maior objetivo do concurso público – deve ser pontuada pela máxima objetividade e transparência.

Atualmente, as grandes empresas privadas passaram a selecionar talentos com a ajuda de técnicos especializados, os chamados headhunters, que selecionam os candidatos a emprego por entrevistas incisivas, para aquilatarem suas competências e suas qualificações.

Infelizmente não temos um detector de vocação para submeter os candidatos a juiz, reduzindo-se a seleção à demonstração de conhecimentos técnicos, adquiridos em cursinhos e longas horas de estudo para enfrentar as provas, cada vez mais difíceis.

O curso de iniciação funcional, segundo momento de importância no recrutamento do juiz brasileiro, agora integrante do próprio concurso de ingresso, como etapa final, pode fazer esse papel avaliativo da personalidade do candidato e aquilatar seu perfil vocacional. A ética deve ser a tônica desse curso, até mesmo como abrangendo o próprio conceito de justiça.

A formação do juiz não se esgota, porém, nesse primeiro curso. Estende-se de forma permanente ao longo de todo o exercício de sua função. Nesse sentido, as escolas judiciais vêm satisfazendo plenamente essa exigência, oferecendo cursos contínuos aos magistrados.

O conteúdo dos cursos de aprimoramento não deve só concentrar-se em matérias de direito material e processual. A interdisciplinariedade tornou-se hoje uma exigência em todos os ramos do Direito.

A comunidade que está sob a autoridade de um juiz tem legitimidade para esperar deste o cumprimento dos seus deveres de forma pronta e eficiente. O juiz tem que se conscientizar de que o seu aprimoramento é também um dever, pois a comunidade almeja ter seus membros julgados por juízes habilitados a proferirem julgamentos tecnicamente corretos e justos. Pelo menos com a preocupação de alcançarem o justo.

Quer queira quer não, quer faça bem, quer faça mal, o juiz é um líder em sua comarca e como tal precisa saber que liderança tem hoje um novo nome: servir.1 O líder de hoje não é mais só aquele que manda, mas o que serve. No caso do juiz, servir ao povo que lhe confere legitimidade de estar ali.

Da leitura destas páginas, percebe-se desde cedo a descoberta da importância da hermenêutica para o desempenho diário do juiz. Esse tema tem hoje como uma de suas consequências práticas ampliar mais a jurisdição constitucional, uma vez que a interpretação do Texto Maior é o desafio permanente de efetivação do Estado Democrático de Direito e da garantia dos direitos fundamentais. Ressalta-se, então, o papel político do juiz como garantidor dos postulados democráticos, na linha desenvolvida por Antoine Garapon.2

Sem a consciência dos seus deveres funcionais e a preocupação em condicionar sua conduta à grandeza do cargo que exerce, o magistrado nunca terá um desempenho satisfatório.

 


AS ESCOLAS JUDICIAIS

 

Acredito que não há mais dúvida quanto à importância das escolas judiciais no processo de formação e aprimoramento dos juízes. Implantadas no Brasil desde a década de setenta, tornaram-se verdadeiros espaços de formação permanente do magistrado. Agora com respaldo constitucional, elas estão efetivamente prestando a melhor contribuição à magistratura brasileira.

As escolas judiciais firmaram-se como laboratórios de pesquisa e formação de juízes. A tendência é serem reconhecidas como centros de pós-graduação e de qualificação da magistratura, inclusive no campo da administração judiciária. Já é tempo de as escolas desenvolverem programas de atuação social, na área da educação e assistência às penitenciárias, recuperação de menores etc. Algumas escolas já desenvolvem, inclusive, atividades culturais, voltadas para as artes e a literatura.

Nesse contexto, merece elogio a preocupação da Reforma (Emenda Constitucional nº 45) que criou, junto ao Superior Tribunal de Justiça, a Escola Nacional de Formação e Apefeiçoamento de Magistrados – ENFAM (Res. nº 03, de 30.11.2006, do STJ), “com o objetivo de regulamentar, autorizar e fiscalizar os cursos oficiais para ingresso e promoção na carreira da magistratura, nos termos do art. 105, parágrafo único, inciso I, da Constituição Federal” (Art. 1º, da referida Resolução). O efeito dessa medida é tornar as escolas mais eficientes com a uniformização de metas e o oferecimento de cursos competentes para alcançarem o objetivo de aprimoramento.

Por seu lado, a Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB também criou a Escola Nacional da Magistratura – ENM que vem oferecendo cursos de aprimoramento e servindo de referência para debates e apoio às escolas estaduais.

Não adianta, também, oferecer cursos e mais cursos de aprimoramento só para satisfazer tais exigências e para habilitar o magistrado à promoção. A situação é mais complexa. Os cursos, para alcançarem seus objetivos, devem contar com a adesão do juiz, sem a preocupação com a simples presença, para efeitos de atendimento da exigência prevista na Portaria nº 3 da ENFAM.

Outro ponto que merece louvor é a participação das escolas, no processo de seleção de juízes, ao organizar e executar o curso de formação para ingresso na carreira da magistratura (Resolução nº 01, de 17.9.2007, da ENFAM), como etapa final do concurso para seleção de novos magistrados. A partir dessa iniciativa, terão as escolas a oportunidade de participarem efetivamente do processo de recrutamento de juízes, o que já se tornava uma necessidade reclamada e avaliada por muitos dos seus entusiastas.

 Os tribunais de justiça devem investir cada vez mais em suas escolas judiciais, pois os efeitos são imediatos, inclusive com a qualificação dos seus servidores.

 A ENFAM veio em boa hora para uniformizar os modos de atuação das escolas estaduais e apoiá-las em suas metas, dando-lhes o respaldo necessário para melhor funcionamento.

 


DESAFIOS À ATUAÇÃO DOS JUÍZES

 

 O juiz da pós-modernidade deve estar atento à eficiência e rapidez do seu trabalho, buscando uma sintonia social mais elevada, em atenção aos objetivos fundamentais da República, previstos no art. 3º da Constituição Federal. O juiz constitucional tem em sua meta de atuação a luta por uma comunidade justa e solidária, contra a desigualdade social e a elevação do homem à sua dignidade de cidadão. Nessa linha de entendimento, Boaventura de Sousa Santos concitou a magistratura para uma revolução democrática da justiça como “uma tarefa muito exigente, tão exigente quanto esta idéia simples e afinal tão revolucionária: sem direitos de cidadania efetivos a democracia é uma ditadura mal disfarçada.”3

A magistratura brasileira vive seu momento institucional de maior importância, assinalado pelo ativismo judicial, pela judicialização da política, a politização da justiça e pela efetividade da jurisdição constitucional. Todos esses fatores exigem mais reconhecimento da importância política do judiciário, da figura do juiz. Em contrapartida, as exigências de selecionar, acompanhar e aprimorar cresceram e se tornaram mais exigentes.

Estatística e planejamento têm que andar juntos na dinâmica administrativa dos tribunais. Por falta de previsão muitos tribunais estão enfrentando sérios problemas em seus estados. Junto com as administrações dos tribunais, as Escolas Judiciais devem estar prontas e aparelhadas para contribuir com esses planos de renovação.

O juiz, diante desses desafios, deve tomar consciência de que precisa comprometer-se com essas metas e procurar renovar-se e aprimorar-se para não ser um entrave nessa corrida. Para superar o limite ideal de produtividade, precisa apelar, além do trabalho normal, para a criatividade, na solução dos problemas e na gestão de sua secretaria.

Só no trabalho de revisão desta obra é que me dei conta de uma omissão em minhas anotações: a informatização do judiciário. Ao chegar à magistratura, convivi com a máquina de escrever por mais de 15 anos, quando o trabalho de datilografar uma sentença de dez laudas consumia o dia inteiro. Experimentei a sensação dos primeiros momentos do uso do computador e hoje posso avaliar a revolução que provocou nos hábitos de um magistrado, de uma secretaria de vara, com consequências positivas na agilização da entrega da prestação jurisdicional.

A informática, hoje, é a grande aliada do juiz no processo de modernização do judiciário, tornando-se cada vez mais útil nos avanços que se superam a cada ano. O que seria da Justiça e da população sem a informática, sem as renovações das secretarias judiciais, sem a criação dos juizados especiais?

A leitura atenta destas anotações retrata clara a evolução da magistratura, a partir da década de 80, quando se começou a questionar a necessidade de reengenharia do Poder Judiciário. A revisão de valores implicou no rompimento com o anacronismo de muitos conceitos sedimentados ao longo dos anos, sem qualquer crítica, verdadeiros paradigmas intocáveis ao longo de anos e anos.

O leitor perceberá que as análises de um juiz titular de comarcas do interior do Estado do Maranhão, longe do Brasil desenvolvido, mas nem por isso desligado dos debates nacionais, já denotavam a necessidade de um aggiornamento da magistratura que hoje se tornou uma realidade.

Em 1995, foi publicado um trabalho da minha autoria na Revista de Doutrina e Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios sobre “qualidade” e administração do Poder Judiciário. Visto de hoje é um trabalho simples, mas que tem o mérito de ter sido um dos primeiros publicados sobre esse tema tão atual. O referido trabalho consta do livro editado pela ENFAM, Bibliografia básica para o ensino e pesquisa nas Escolas de Magistratura.

Premido pelos fatos, pela pressão do excesso de processos e pelas reclamações da sociedade, o Poder Judiciário já incorporou em seu dia-a-dia a idéia de gestão judiciária como exigência imediata, sob pena de estagnar. O empirismo que marcou as práticas de condução dos velhos cartórios e do comando processual está deixando de caracterizar o Judiciário deste novo milênio, agora preocupado com técnicas modernas de administração, comunicação e aplicação dos recursos da informática.

As mentalidades retrógradas que dirigiram o Judiciário por muito tempo não têm mais condições de estancarem o fluxo da modernização que veio como uma onda irreversível de renovação que faz lembrar Alvin Toffler e seus desafios futuristas, seus conflitos de ondas, ondas do passado e ondas do futuro.

O Estado do Maranhão é, particularmente, um exemplo de como essa modernização foi retardada. Com uma justiça funcionando há quase 200 anos, só em 2003 – pela primeira vez em sua história – efetuou-se um concurso público para seleção de serventuários. E o resultado dessa medida foi sentido imediatamente por todos os juízes, com a melhoria da qualidade e da agilidade dos serviços de secretaria.

A rapidez que comanda a sociedade pós-moderna não permite que as administrações esperem o que vai acontecer. Têm que prever e prevenir-se com planos, metas e estratégias.

Destaco, a seguir, para concluir esta Introdução, uma seleção bibliográfica bem específica, que pode servir de roteiro elementar para a formação de um magistrado.

 

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SOUZA, Ailton Alfredo de. Linguagem jurídica e poder. Recife: Nossa Livraria, 2005.

SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Poderes éticos do juiz: a igualdade das partes e a repressão ao abuso no processo. Porto Alegre: Fabris, 1987.

TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. O juiz: seleção e formação do magistrado no mundo contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.

VALLE, Gabriel. Ética e direito. Porto Alegre: Síntese, 1999.

VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999.

_________. Corpo e alma da magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1997.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.

 


 

29 de setembro de 1982

Hoje, ao decidir fazer estas anotações, recordo meu primeiro ano nesta comarca, que se pode resumir nesta sequência de fatos e conclusões.

Sob forte emoção, indecisão e mesmo perplexidade, entrei em exercício na minha primeira comarca, ao cair da tarde de 4 de setembro de 1981. Logo no outro dia, viajei para minha terra natal, vizinha à comarca, como se ali fosse me refazer do choque e meditar sobre seus efeitos.

Minha primeira semana como juiz foi uma experiência emocionalmente terrível. Pela minha timidez, era difícil para mim a adaptação da figura de um juiz à minha pessoa. Demais, nos primeiros contatos, fiquei assoberbado ante tanta responsabilidade. Ao redor de mim, contemplava uma constante expectativa de todos, quanto aos meus atos e minha conduta.

Os primeiros passos indecisos de afirmação: os despachos, casamentos, mandados, a derrubada de uma cerca, a preocupação exagerada com as sentenças, sua forma e o estilo, e o medo de errar. Os primeiros recursos. Um agravo de instrumento como minha primeira afirmação perante o Tribunal.

Vivi, nos primeiros meses, a constante perplexidade diante da nova função e a persistente comparação, em tudo, com a função de promotor de justiça que acabara de deixar para ingressar na magistratura. Essa dubiedade atrapalhou muito minha imediata adaptação à nova atividade. Precisava me convencer de que era um juiz.

Passado esse primeiro ano, tenho sempre procurado descobrir, como que buscando uma justificativa para minha atitude, se vale a pena ser juiz. Ainda não sei. Não estou arrependido porque tenho me realizado. Ainda hoje prolatei uma sentença que me deixou confortado, após o trabalho de datilografar oito laudas. Ao contemplar um trabalho desse porte em que despendi grande dedicação e esforço, há uma satisfação interior que recompensa. Talvez sejam dessas experiências que um juiz alimenta sua vocação e sua vida.

As exigências e a responsabilidade que recaem sobre os ombros de um magistrado são pesadas e põem à prova, a cada instante, sua maturidade, capacidade e bom senso.

A magistratura é um sacerdócio, se vivida honestamente e com dignidade. Um sacerdócio que exige muita dedicação, muito sacrifício.

Em todas as profissões, em todas as atividades, há aqueles que as exercem com autenticidade e os que passam sem qualquer preocupação. É aquela velha comparação entre o arado e o navio. Os primeiros, se preocupam com o fundo das questões, em deixarem sulcos na terra por onde passam, e querem fazer da função uma forma de realização interior. Os segundos fazem tudo na superfície, com a pressa de um viajante que sempre está de saída; são como rastros de um navio que se dissolvem logo após a passagem. Tenho procurado estar entre os primeiros, daí minha preocupação, neste primeiro ano de magistratura, em querer descobrir as justificativas para a opção que fiz.

 

 2 de outubro de 1982

 Tenho buscado fazer da magistratura – não sei até que ponto estou certo – um meio para aprender mais, para pesquisar e para estudar. Realmente é uma atividade que fornece fértil material para pesquisa e estudo profundo. Na prática, deparamo-nos com detalhes que não se encontram em compêndios nem são ensinados nas faculdades, principalmente quanto ao processo civil.

Esse espírito científico que tem animado o exercício desta função tem me permitido desenvolver uma atitude de superioridade e independência crítica perante os processos. Recebo, por isso, os recursos como uma oportunidade para aquilatar ou retificar meus conhecimentos.

 

 3 de outubro de 1982

Nesse primeiro ano de magistratura, devo à minha mulher o conforto e estímulo no meu trabalho diário; ao meu filho, a alegria que me faz esquecer os dissabores e as contrariedades. A minha família, portanto, é meu refúgio onde recebo as forças e o entusiasmo para o trabalho.

 

7 de outubro de 1982

O período eleitoral requer muito equilíbrio de um juiz, que precisa ter, sobretudo, maturidade. As intrigas interioranas são constantes e mesquinhas. O magistrado que não estiver atento, com uma visão do alto, sobranceira, poderá se envolver com o terra a terra da política municipal e, então, fatalmente se parcializará, optando por uma facção.

Perco a paciência, às vezes, com tantas tolices, sem fundamento, que a mentalidade politiqueira engrandece. Os “políticos” se mostram tão deseducados e grosseiros que deixam, em seus diálogos (nesse período, são mais reclamações ou exigências), exalar a dúvida na integridade da justiça, de tal maneira que ofendem, sem sentir que estão ofendendo.

Minha política, para não ficar alheio ao momento, é desestimular as disputas e as intrigas, mostrando sempre aos concorrentes o caminho sadio da luta eleitoral.

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30 de junho de 1984

O Poder Judiciário nunca será forte, também, enquanto a magistratura não for unida, coesa, em suas reivindicações. A falta de integração – vertical ou horizontal – enfraquece o Poder Judiciário, já fraco de origem.

 

15 de julho de 1984

Acabo de ler o segundo volume de memórias do ministro Cândido Motta Filho, Dias lidos e vividos. Logo, no primeiro capítulo, há passagens interessantes da sua vida de magistrado da mais alta Corte do país. E há desabafos impressionantes, como este: “Você sabe, Motta Filho, que eu errei de caminho. Nunca devia ser juiz, porque cada vez mais sinto que a justiça é um ideal e a injustiça é uma terrível realidade no cotidiano. Dizem que o juiz não tem o direito de indignar-se e no entanto eu não fiz outra coisa senão me indignar”. Essas palavras são do ministro Ribeiro da Costa.

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Consegui, há poucos dias, uma grande vitória contra a corrupção, merecendo o apoio do Tribunal de Justiça. Consistiu na punição de um escrivão corrupto e incompetente que praticava comércio no cartório em que servia. Mesmo assim, lutando com uma evidência a meu favor, precisei de coragem, para ir até o fim, porque o mal tem suas raízes tão fortes, algumas secretas que, para ser destruído é necessária muita persistência e eficiência.

  

25 de julho de 1984

Nosso contato com a pessoa humana, seus defeitos, vícios e deformações morais, é, talvez, superior ao de um sacerdote. Os quadros tristes do comportamento humano estão em constante exposição na vida diária de um magistrado. Hoje, ouvi dois adolescentes – um casal – que repudiaram, com uma carga de indiferença, ou quase ódio, um pai doente, por falta que este cometeu, talvez movido pela irritação da própria doença que o prostrou em uma rede. Ao lado da mãe arrebatada, não consegui convencê-los a procurar o pai. Havia uma determinação precocemente firme naqueles filhos ingratos. Coisas da vida!

 

17 de agosto de 1984

Iniciei uma experiência que considero bastante positiva, apesar da ousadia.

Tomando conhecimento de que nesta comarca há uma Comissão de Direitos Humanos, organizada pela Igreja local, convoquei-os para, em reunião, expor-lhes a necessidade que percebo e entendo que deve haver de uma ligação entre o juiz, como representante de um Poder e encarnação da Justiça, notadamente no interior, e a comunidade. Os membros da Comissão aceitaram minha proposta, que já está em prática.

Fundou-se minha decisão, além dessa necessidade que sinto da interligação Justiça-comunidade, no fato de que muitos problemas que se me apresentam, apesar de me sensibilizarem, são quase impossíveis de ser resolvidos sem o auxílio de outras pessoas da comunidade. É o pobre que quer alimentos, que está em desavença na família por uma questão de somenos importância, o preso ilegalmente, o posseiro despejado abruptamente etc. Todos são pessoas pobres que procuram o juiz como última esperança, a última palavra. Que desesperança não gerará no espírito desse homem a indiferença da autoridade máxima local!

Evidentemente que o critério da moderação deve ser observado, inclusive na escolha dessas pessoas, pois é muito difícil distinguir cidadãos, em uma cidade pequena, que não estejam envolvidos com a política local.

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20 de setembro de 1989

Um magistrado devia ser a pessoa mais bem paga da comarca, ou tanto quanto o prefeito. Não é possível que um homem com o poder de julgar seu próximo tenha que se preocupar com o que ganha e o que gasta. Ofende, inclusive, o equilíbrio emocional de que precisa para julgar. Constatei que quase todos os funcionários da agência do Banco do Brasil S.A., desta cidade, ganham mais do que o juiz. Sem carro, pensei em comprar o veículo do subgerente que estava de muda. Não pude, pelo valor pretendido. Uma moça, caixa do banco, funcionária com menos de dois anos, comprou o veículo. Eu, com oito anos de magistratura, não pude. Continuei a pé.

 

17 de março de 1990

Estou vivendo a ansiedade da promoção que, parece, está perto. Há quase quatro anos nesta comarca, já sinto a necessidade premente de merecer uma promoção. Aliás, entendo que ao juiz não deveria ser permitido permanecer mais de dois anos em cada comarca, principalmente para o juiz residente no lugar, vivendo o dia-a-dia da comunidade, em um lugar sem lazer e sem oportunidade de expansão.

 

7 de abril de 1990

A todo instante de sua vida funcional, o magistrado deve estar possuído pela ética. Há bons manuais de ética à disposição do juiz, alguns específicos, outros genéricos, a começar do grande Aristóteles e sua Ética à Nicômaco.

 

15 de abril de 1990

Hoje estou comemorando meu quarto aniversário nesta comarca. Pensei em passar apenas os dois anos necessários, mas me enganei. Os critérios de promoção devem ser revistos para não continuarem injustos. A nova Constituição acenou com algumas providências neste sentido, mas até o momento não foram praticadas.

Na Justiça, não deveria haver injustiça. Se assim fosse, não haveria ressentimentos, não haveria reclamação. Deveríamos ser o modelo da perfeição em ordenar as nossas coisas internamente, para ostentar um organismo sadio.

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9 de junho de 1996

O carreirismo corrói a magistratura e retira a sinceridade das relações pessoais entre seus integrantes. O aparente prevalece sobre o real. Cada juiz é, antes de tudo, uma vaga. A morte agita a classe mais pelas suas consequências carreirísticas do que pelo luto. E tudo parece natural.

 

22 de junho de 1996

A presunção do saber é um mal do qual o magistrado deve se afastar. A humildade é uma virtude que se coaduna com o espírito de pesquisa e aprendizagem recomendável aos juízes. Viver aprendendo, sem soberba, sem empáfia, eis a conduta de um juiz comprometido com seu cargo.

 

7 de julho de 1996

Um juiz de família precisa de mais conhecimentos interdisciplinares para bem desempenhar sua função. Já fiz essa afirmação e volto a repeti-la. Na sua atividade, ele lida com o ser humano mais frágil: o desiludido, o fracassado na vida conjugal, o supérstite inconformado, o órfão, o carente, o necessitado, o revoltado, o incapaz, o triste, enfim, o homem em toda a sua dimensão.

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O livro FORMAÇÃO DO JUIZ, Anotações de uma experiência, de Lourival Serejo,  encontra-se disponível para venda pelo site da Editora Juruá.

 


1 HUNTER, James C. O monge o e executivo. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.

2 GARAPON, Antoine. O guardador de promessas. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

3 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2007, p.90.



Lourival Serejo

     Lourival de Jesus Serejo Sousa nasceu na cidade de Viana, Maranhão. Filho de Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa. Formou-se em Direito, em
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