As provas ilí­citas e as questões de direito de famí­lia

 

1.A importância da prova 2. As provas lícitas e as ilícitas 3. A Constituição Federal e as provas 4. A utilização das provas ilícitas no Direito de Família 5. Conclusões.


1. A importância das provas

     A complexidade e importância das provas está refletida nas palavras de um dos seus maiores estudiosos, Malatesta, logo nas primeiras palavras de sua célebre obra: “Sendo a prova o meio objetivo pelo qual o espírito humano se apodera da verdade, a eficácia da prova será tanto maior, quanto mais clara, ampla e firmemente ela fizer surgir no nosso espírito a crença de estarmos de posse da verdade”(Malatesta, 1915, p.13).

     A força da decisão do juiz está nas provas que a sustenta, pois sua convicção é embasada no conhecimento dos fatos, confirmados pelas provas trazidas aos autos.

     Nesse processo de valoração das provas surgem os sistemas conhecidos e assim distribuídos pela doutrina: a) sistema legal ou positivo; b) o da livre convicção e c) o critério da persuasão racional.

     A invocação do artigo 132 do nosso Código de Processo Civil dispensa comentários sobre tais critérios, pela clareza da sua opção. De fato, o critério da persuasão racional é o que melhor se coaduna com o dever de fundamentação das decisões e o que alerta para a responsabilidade do julgador, no sentido de fundamentar sempre suas decisões.

     Por outro lado, o chamado direito à prova é atualmente uma garantia do cidadão, uma forma de efetivar o acesso à Justiça, permitindo-lhe apresentar ao juiz os meios necessários de confirmar sua versão e ter seu pleito atendido. Mas impende afirmar que esse direito não é absoluto porque está condicionado à legalidade da sua obtenção, com os limites que a Constituição estabeleceu, como veremos adiante.

2. As provas lícitas e as provas ilícitas

     As provas lícitas são aquelas obtidas de forma correta, sob a prescrição da lei e da ética. Segundo o art. 332 do nosso CPC “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”. Neste artigo estão as balizas legais e éticas das provas. Toda prova que foge desse parâmetro é ilícita e, portanto, imprestável.

     Luiz Francisco Torquato Avolio conceitua prova ilícita ou ilicitamente obtida como a prova colhida com infração a normas ou princípios de direito material – sobretudo de direito constitucional (Avolio, 1995, p.39).

     O tema tem sido debatido com muito interesse pela doutrina, que chegou a sistematizar as diversas opiniões apontando as seguintes correntes:

  1. Obstativa: considera inadmissível a prova obtida por meio ilícito, em qualquer hipótese e sob qualquer argumento, não cedendo mesmo quando o direito em debate mostra elevada relevância. Também conhecida como “teoria do fruto da árvore envenenada”, considera que o ilícito na obtenção da prova contamina o resultado havido;

  2. Permissiva: aceita a prova assim obtida, por entender que o ilícito se refere ao meio de obtenção da prova, e não a seu conteúdo;

  3. Intermediária: admite a prova ilícita, dependendo dos valores jurídicos e morais em jogo, (Wambier, 1998, p.489).

     O grande parâmetro hoje, como veremos a seguir, é a previsão constitucional, que tratou de maneira rigorosa o uso de provas obtidas por meios ilícitos.

     Especificamente, no que se refere à interceptação telefônica, Luiz Flávio Gomes, com sua a sua autoridade de estudioso do assunto, é taxativo: “Não é possível, conseqüentemente, interceptação para fins civis, comerciais, industrias, administrativos, políticos etc. Nem sequer para investigação que envolva direitos difusos (coletivos). Não cabe interceptação em ação civil pública, ação de enriquecimento ilícito etc. (Luiz Flávio, 1997, p.118).

     Mas, voltamos a insistir, a complexidade do assunto é por demais séria, tanto que levou o mestre José Carlos Barbosa Moreira a assentar:


“O problema das prova ilícitas inclui-se entre os mais árduos que a ciência processual e a política legislativa têm precisado enfrentar, dada a singular relevância dos valores eventualmente em conflito. De um lado, é natural que suscite escrúpulos sérios a possibilidade de que alguém tire proveito de uma ação antijurídica e, em não poucos casos, antiética; de outro, há o interesse pública de assegurar ao processo resultado justo, o que normalmente impõe que não se despreze elemento algum capaz de contribuir para o descobrimento da verdade. É sumamente difícil, quiçá impossível, descobrir o ponto de perfeito equilíbrio entre as duas exigências contrapostas”. (http://www.forense.com.br/ef08f.htm)

3. A Constituição Federal e as provas

 

Art. 5º.....
XII – é inviolável o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

     A leitura dos incisos acima transcritos não deixa dúvida quanto ao seu alcance: o sigilo das correspondência, das comunicações telegráficas e de dados são absolutamente invioláveis. As comunicações telefônicas, entretanto, podem ser interceptadas desde que atendidos dois pressupostos a) por ordem judicial b) para fins de investigação criminal.

     O constituinte foi bastante rigoroso com a questão das provas obtidas por meios ilícitos, no sentido de proteger a intimidade de cada cidadão.

     Posteriormente, a Lei 9.296, de 24.07.96 veio para regulamentar o art. 5º, XII , da CF, ou seja, a interceptação telefônica e o fluxo das comunicações pela telemática para fins de instrução criminal (art.1º), mantendo o mesmo espírito de proteção à intimidade que o texto constitucional destacou.

     Vale ressaltar que o STJ, deparando-se com esse problema, em um caso concreto, já teve oportunidade de adotar o seguinte entendimento, minimizando o rigor da interpretação literal:

“Constitucional e Processual Penal. Habeas Corpus. Escuta telefônica com ordem judicial. Réu condenado por formação de quadrilha armada, que se acha cumprindo pena em penitenciária, não tem como invocar direitos fundamentais próprios do homem livre para trancar a ação penal (corrupção ativa) ou destruir gravação feita pela polícia. O inciso LVI do art.5º da Constituição, que fala que ‘são inadmissíveis... as provas obtidas por meio ilícito’, não tem conotação absoluta. Há sempre um substrato ético a orientar o exegeta na busca de valores maiores na construção da sociedade. A própria Constituição Federal brasileira, que é dirigente e programática, oferece ao juiz, através da ‘atualização constitucional’ (verfassungsaktualisierung), base para o entendimento de que a cláusula constitucional invocada é relativa. A jurisprudência norte-americana, mencionada em precedente do Supremo Tribunal Federal, não é tranqüila. Sempre é invocável o princípio da ‘razoabilidade’ (reasonableness). O “princípio da exclusão das provas ilicitamente obtidas (exclusionary rule) também lá pede temperamentos. Ordem denegada”. (HC nº 3.982-RJ, Rel. Min. Adhemar Maciel).

     A nosso ver, a discussão jurídica desenvolvida durante a votação do citado recurso, entre os notáveis ministros do STJ, convence da necessidade de uma aplicação mais razoável, de acordo com o contexto, para a admissão de provas eivadas de ilicitude, desde que justificadas em nome de uma valor maior (v.g. a liberdade, a vida), mas sempre na esfera criminal.

     Ainda sobre o alcance da norma constitucional, comungamos do entendimento de Luiz Francisco Avolio, já citado, quando enfatiza:

“Embora a Constituição, aparentemente, se limite a prescrever a inadmissibilidade da prova ilícita no processo, o alcance dessa disposição deve extrapolar a fase da admissibilidade das provas, propriamente dita, para abranger os demais momentos processuais relativos à prova, quais sejam os da sua produção e valoração pelo juiz, em qualquer estado e grau do procedimento, como teria sido mais prudente que dispusesse, para evitar qualquer interpretação colidente com o próprio espírito das vedações probatórias”(Avolio, 1995, p.89).

     Em resumo: a Lei 9.296/96, na linha da permissão constitucional, só se aplica às investigações de ilícitos penais. Para conter a intervenção do Estado vigilante a própria Lei Maior traz as garantias dos direitos fundamentais do cidadão.

4. A utilização das provas ilícitas no Direito de Família

     As provas, em geral, têm aplicação peculiar no Direito de Família, pela natureza das ações que envolve. A exemplo, temos a admissão de depoimento de parentes, empregadas domésticas e, até, filhos, tudo no afã de encontrar uma solução justa para a lide.

     O problema das provas ilícitas torna-se, por conseguinte, mais delicado quando se refere a esse ramo do Direito, onde repousam as relações familiares, a invidividualidade de cada membro da família, sua dignidade e intimidade e onde a importância do sigilo é objeto de previsão legal (art.155,II, do CPC).

     Em ação de separação litigiosa, com disputa pela guarda da única filha do casal, enfrentamos esse tema pela primeira vez. Um dos cônjuges gravara as conversas da filha com o outro, sem que ambos soubessem e depois mandou-nos entregar para “ o juiz ficar sabendo a verdade”.

     Situações como essa levam às vezes os cônjuges a procurar sucessivos meios de provas para reforçarem seus argumentos. Então, surge a figura do detetive particular, da escuta telefônica, dos flagrantes forjados, das situações provocadas. Até que ponto essas provas obtidas unilateralmente têm idoneidade suficiente para serem aceitas no juizo da família? Para alguns autores, especificamente, neste caso de guarda, seria admissível o uso da prova ilícita por envolver questão de “alta carga valorativa” (Wambier,1998, p.489).

     Como se não bastassem os conhecidos argumentos constitucionais, na área da família temos o aspecto ético que gira em torno da dignidade da pessoa humana.

     Não pode a parte por sua iniciativa, nem mesmo o juiz de família, a requerimento, autorizar a coleta de provas que ofendam a dignidade de cada litigante.

     Outro aspecto que o problema pode apresentar é o das chamadas “provas emprestadas”, aquelas trazidas do processo criminal para servirem de prova perante o juiz.

     Em referência ao nosso estudo poderia ocorrer – vamos admitir teoricamente – que as provas colhidas em processo de adultério (CP art. 240) fossem transportadas (=emprestadas) para uma ação de separação litigiosa, o que, aparentemente, seria razoável recebê-la. E se essas provas houvessem sido colhidas em interceptação telefônica?

     Evidente que tal prova, mesmo se autorizada judicialmente, era imprestável, pois a Lei 9.296 só admitiu a interceptação telefônica em investigação de crimes apenados com a pena de reclusão e a pena para o adultério é de detenção de 15 dias a 6 meses.

     A posição majoritário do Supremo Tribunal Federal, segundo nos relata Moraes, entende que a prova ilícita originária contamina as demais provas dela decorrentes, de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada (Moraes, 1998, p.113 – grifos do autor).

     A posição doutrinária aponta para se rejeitar o uso de tal prova em outro ramo do direito diferente do penal: a prova colhida por interceptação telefônica no âmbito penal não pode ser “emprestada” (ou utilizada) para qualquer outro processo vinculado a outros ramos do direito ( Luiz Flávio, 1997, p.119).

     Discordamos, nesse ponto, do mestre Cahali, quando diz que tal “migração” é admissível porque o art.332 do CPC não traz “qualquer consideração quanto às circunstâncias em que tenha sido obtida a respectiva gravação” (Cahali,1995, p.751). Entendemos que tal restrição está acima do disposto nesse artigo, porque vem inscrita na Lei Maior, fonte de todos os princípios do nosso ordenamento jurídico.

     Discordamos, ainda, do referido autor, em dois pontos de sua obra monumental. Primeiro, quando diz:

“Conquanto respeitáveis esses enunciados, insistimos na admissibilidade, em separação litigiosa, de prova obtida pelo cônjuge inocente através de gravação de conversa telefônica do cônjuge culpado com terceira pessoa” (Cahali,1995, p.754).

     Cremos que após a Constituição de 88 não é mais possível sustentarse essa posição, pois os limites da obtenção da prova, ali traçados, são rigorosos, em razão da dignidade da pessoa humana.

     A segunda objeção refere-se à correspondência, ao dizer que “a carta, como documento, ainda que pertencente ao destinatário, continua representando meio hábil de prova moralmente legítimo; não a afeta como meio apto à formação do convencimento no processo de separação judicial, o fato de ter sido obtida através de interceptação ou violação de correspondência, matéria que extravasa o âmbito do processo civil” (Cahali, 1995, p.746).

     Ora, a questão da correspondência é tão séria que, no texto constitucional, não mereceu sequer a exceção aberta às comunicações telefônicas. Nesse ponto, são absolutamente inadmissíveis tais provas, principalmente na seara do Direito de Família. O raciocínio hermenêutico usado pelo STJ para mitigar a norma constitucional, em caso de habeas corpus, a nosso sentir, não pode ser usado, em se tratando de causas de família.

     O que nos interessa enfatizar, no âmbito das questões de família, é a preocupação com a proteção do indivíduo e as relações familiares inscrevem-se na área privada, apesar de toda a peculiaridade do Direito de Família. Desse entendimento não discorda as últimas decisões assim ementadas:

Prova – Fita magnética. Invalidade. Resguardo constitucional da intimidade que não admite a modalidade no âmbito civil, máxime quando obtida clandestina e ilicitamente. Aplicação do art.5º, X, XII e LVI, da CF e inteligência do art.383 e parágrafo único do CPC. Declaração de voto. (TJSP – AI 124.954-1(segredo de justiça) – 4ª C – Rel. Des. Olavo Silveira – j.23.11.1989) RT 649/65).

Prova. Produção. Separação judicial. Adultério. Comprovação mediante apresentação de gravações telefônicas do cônjuge. Ilicitude da prova. Art. 5º, X, XII e LVI, da CF. ( TJSP – MS 198.089-1 8ª C – Rel. Des. José Osório. J.15.09.1993) ( RJTEJSP 149/193)1.

5. Conclusões

     As causas que envolvem questões de família são preservadas pela sua natureza, tanto que o legislador as recomendou que fossem tratadas em “segredo de justiça” ( art.155,II, do CPC).

     Soma-se a esse tratamento a previsão constitucional como direito fundamental da inviolabilidade das comunicações e da inadmissibilidade das
provas ilícitas.

     Não há, portanto, qualquer aproveitamento, dentro do Direito de Família, das provas obtidas por meios ilícitos, como interceptação telefônica, uso de detetives particulares, flagrante forjados etc.

     No campo da informática, essa proibição alcança o uso do email, tanto no momento da sua emissão como se já estiver armazenado na caixa postal do usuário. Essa proibição é importante, diante das novas perspectivas surgidas, como o adultério virtual, já bem lembrado pelo jurista Rodrigo da Cunha Pereira.

     A preservação da intimidade de cada um, da dignidade e do sigilo das comunicações tornam as relações familiares imunes ou uso de provas obtidas por meios ilícitos.

     Em que pesem as posições divergentes, não se pode negar que o tema é por demais difícil e desafiador, não comportando uma posição irredutível. Luiz Alberto Thompson Flores Lenz, em seu estudo sobre o assunto, traz ponderável conclusão que vale a pena reproduzir:

“Inadmissível é o dolo, a malícia, a torpeza na captação da prova. É, aliás, o que está proibido no art.332 do CPC. (...) A posição do juiz, como dirigente do processo e destinatário da prova, exige uma sensibilidade especial. Cabe a ele considerar que existem certos ramos do ordenamento jurídico, notadamente o direito de família, em que a captação da prova é mais difícil. Nestes deve ser mais flexível, isso sem prejuízo das garantias constitucionais do indivíduo. O magistrado deve, acima de tudo, empregar o bom senso no exame destas provas” (Lenz,1987, p.100).

     Nota-se que o trabalho citado é anterior à Constituição de 1988 e o autor já traz a preocupação com as garantias constitucionais. Que dizer hoje, quando, expressamente, a Carta Magna proíbe tais provas de forma rigorosa?

     Assim, os limites da admissibilidade estão, sem dúvida, na Lei Maior e é ali que devemos buscar os alicerces de qualquer interpretação para a aplicação justa da lei, em casos que envolvam o uso de provas ilícitas como em qualquer outro caso.


Bibliografia


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CAHALI, Yussef Said. Divórcio e separação. Tomo I, 8.ed. São Paulo: ERT, 1995.
GOMES, Luiz Flávio & Cervini, Raúl. Interceptação telefônica: lei 9.296, de 24.07.96. São Paulo: ERT, 1997.
LENZ, Luís Alberto Thompson Flores. Os meios moralmente legítimos de prova. Ajuris 39/84
MALATESTA, Nicola F. Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Vol. I. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1901.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. A Constituição e as provas ilicitamente obtidas. http//www.forense.com.br.ef.08/htm
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1998.
PORTO, Sérgio Gilberto. Prova generalidades da teoria e particularidades do Direito de Família. Ajuris 39/113
SANTOS, Moacyr Amaral dos. Comentários ao Cod. de Processo Civil. IV vol. Rio de Janeiro: Forense, 1988.


1 Revista Brasileira de Direito de Família, vol. 1. Porto Alegre: Síntese, 1999, p.132.



Lourival Serejo

     Lourival de Jesus Serejo Sousa nasceu na cidade de Viana, Maranhão. Filho de Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa. Formou-se em Direito, em
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